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Crítica | As Vinhas da Ira, de John Steinbeck

A odisseia da família Joad.

por Ritter Fan
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Bons romances de cunho realista conseguem capturar com perfeição um momento histórico, um país, o povo desse país ou um sistema econômico, mas muito poucos alcançam tudo isso ao mesmo tempo e menos ainda aqueles que não tiveram o benefício de análise histórica em retrospecto por ser escrito anos ou décadas depois do ocorrido. E apenas um punhado alcança o status de atemporalidade mesmo estando profundamente mergulhado em um período específico, de um país específico, funcionando hoje tanto como uma versão ficcional de fatos históricos, quanto um alerta em forma de narrativa, e, claro, um romance de alta qualidade por seus próprios méritos. As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, originalmente publicado no primeiro semestre de 1939, é exatamente esse tipo de rara obra literária que é a expressão viva de um momento sendo vivido na época em que foi escrita e que atravessou os anos incólume, com ensinamentos a serem absorvidos mesmo hoje, próximo de completar nove décadas.

Em seu romance, Steinbeck narra a história da família Joad, fazendeiros em Sallisaw, Oklahoma, que é obrigada a deixar seu lar de gerações para migrar para a Califórnia em busca de uma vida melhor em que os campos são verdejantes, a colheita garantida e os salários generosos a ponto de permiti-los sonhar até mesmo em estudar e abrir negócios próprios. A saga começa com o retorno de Tom Joad ao seu lar depois de quatro anos preso por ter matado um homem em legítima defesa, algo que ocorre depois que ele se reencontra com o ex-pastor Jim Casy no meio do caminho e chega em sua casa na véspera da mudança em razão da perda das terras ao banco como consequência da Grande Depressão iniciada com a queda da Bolsa de Valores de 1929 adicionado do chamado Dust Bowl, fenômeno causado pela exploração equivocada das terras que levou à tempestades de areia de uma década no meio-oeste americano, devastando plantações. Seus avós, seus pais, seu tio, seus cinco irmãos, o marido de sua irmã, ele e Jim se amontoam em um velho sedã Hudson transformado em caminhão com seus poucos pertences e vagarosamente partem para oeste pela Rota 66, deixando para trás toda uma vida dura, mas autossuficiente, despejados pela ganância do capitalismo sem freios.

Mesmo nos capítulos que aliviam um pouco a angústia que o leitor sente desde as primeiras páginas do romance pelo destino dos personagens e das pessoas que eles representam, Steinbeck deixa muito claro o futuro sombrio que imagina para seu país e que, em muitos aspectos, foi concretizado. Ele faz questão de pontuar até o fim da última página a força, o valor, a coragem e o altruísmo de gente simples vivendo um dia de cada vez nas condições mais terríveis, mas, por outro lado, ele também não esconde seu desgosto por um sistema econômico cruel e injusto quando implementado sem qualquer humanidade, o que levou e até hoje ainda leva muita gente a criticar fortemente suas visões, negando os fatos historicamente comprovados e afirmando que, ao contrário, foi o capitalismo selvagem, na base do custe o que custar, que salvou os EUA do fim certo. Não enxergar em As Vinhas da Ira uma visão impressionantemente lúcida de um ponto de virada na história dos EUA do século XX e não compreender e internalizar os comentários que Steinbeck faz sobre o capitalismo é o mesmo que dar murro em ponta de faca, negar o óbvio e rasgar livros de história.

Entre os capítulos que abordam a odisseia da família Joad em busca da Terra Prometida, odisseia essa que pode não durar tanto tempo, mas que não foi menos dura do que a do próprio Odisseu, Steinbeck faz uso do que podemos chamar de inter-capítulos que funcionam como breves interlúdios que apresentam o contexto socioeconômico do que vemos os protagonistas enfrentarem. Neles, Steinbeck aborda a ganância e crueldade dos bancos, a cadeia de aproveitadores da desgraça alheia representada por um vendedor de carros usados, a ironia que é um país feito de imigrantes que deslocaram povos originários tratar mal seus próprios migrantes, a desalmada manipulação da lei de oferta e procura para derrubar os salários, a concentração do poder na mão de poucos que leva à corrupção de autoridades e assim por diante. São poucas páginas de cada vez que parecem dolorosos e sombrios poemas sobre a condição humana que dão um sabor especial à obra e conectam os capítulos mais longos centrados em Tom e sua cada vez mais desesperançosa família que, claro, começa a jornada na inocência, ainda acreditando – mesmo que lá no fundo – nas promessas feitas por panfletos anônimos prometendo trabalho e salários dignos.

Steibeck tem o comando absoluto da palavra. Seus inter-capítulos são incrivelmente ritmados a ponto de eu ter me pego algumas vezes lendo-os como se fosse um musical, se é que isso faz sentido (mas eu li no original em inglês, vale dizer), com nenhuma palavra desperdiçada, nada fora do lugar. Ele consegue sair do macro para o micro sem quebra de fluidez e desenvolve seus personagens com extremo cuidado, mas jamais desviando-os do que eles sempre foram. Tom tem plena consciência do crime que cometeu, de que meramente sair de Oklahoma é um crime que viola sua condicional, mas ele não tem opção e precisa acompanhar sua família, até mesmo para ajudar a protegê-la. Tudo o que ele faz a partir do momento em que sobe no carro convertido obedece a uma perfeita lógica interna, com ele e sua mãe funcionando como os alicerces do pequeno grupo humano tentando sobreviver apenas mais um dia, o que, claro, constrói e mantem a atmosfera opressiva e claustrofóbica que os migrantes precisam enfrentar a cada minuto do dia.

As Vinhas da Ira é um aflitivo drama de luta contra forças intransponíveis, uma verdadeira avalanche de agonia e tristeza que é um misto de denúncia, condenação e presciência sobre um futuro difícil que, por incrível que pareça, ainda consegue deixar uma fresta para a esperança, nem que seja a esperança de que a mensagem será compreendida e, muito aos poucos, internalizada por gerações futuras. John Steinbeck, com clareza de percepção e impressionante trabalho de pesquisa enquanto o que ele descreve acontecia, criou a obra definitiva de seu país e de seu povo no século XX que reverbera hoje e continuará reverberando por muito tempo. Uma obra-prima da língua inglesa como poucas que não deixa ninguém indiferente quando a última página é virada.

As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath – EUA, 1939)
Autoria: John Steinbeck
Editora original: Viking Press
Data original de publicação: 14 de abril de 1939
Editora no Brasil: Editora Record
Data de publicação no Brasil: 26 de setembro de 2022
Tradução: Herbert Caro, Ernesto Vinhaes
Páginas: 560

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