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Crítica | Ascension (2021)

Ascender é enxergar a desolação.

por Ritter Fan
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Em sua estreia em documentários em longa metragem, a diretora sino-americana Jessica Kingdom usa quase que exclusivamente o poder da imagem para tecer comentários sobre a ascensão do capitalismo no seio do comunismo chinês, em uma obra que existe para convidar o espectador a observar, pensar e tirar suas próprias conclusões, sem a ajuda de narração, entrevistas ou maiores contextualizações. Sei que é injusto comparar com uma obra-prima do quilate de Koyaanisqatsi, mas a cineasta parece ter tirado grande parte de sua inspiração do inesquecível filme oitentista de Godfrey Reggio.

Essa inspiração vem não só do balé de imagens que acontece diante de nossos olhos, mas, também, pelo documentário, que somente parece desestruturado em uma análise perfunctória, traçar um caminho muito bem marcado como em movimentos de uma sinfonia que contam uma história, história essa que começa no degrau mais baixo da escada da cadeia de produção em massa até seu ponto mais alto, em que produção se transforma em consumo e a matéria prima para isso tudo não é exatamente o plástico, o metal e outros materiais, mas sim o ser humano. Diferente do filme de Reggio, porém, não vemos em Kingdom nenhuma tentativa de criar harmonia entre os mundos que mostra, entre as pontas em tensão. Muito ao contrário, seu tom é acusatório, ainda que não necessariamente somente ao regime chinês e, mais do que isso, condenatório.

Afinal, a China de outrora, da Revolução Cultural, dos valores em tese abraçados por Mao Tsé-Tung, não mais existe de verdade. Sim, trata-se de uma ditadura e sim, trata-se de um país que ainda privilegia o comunismo não como sistema econômico, mas com forma de controle das massas, mas Kingdom consegue ir além se o espectador deixar e enxergar no que ela mostra traços daquilo que, de uma forma ou de outra, acontece também no Ocidente, seja em países em desenvolvimento, seja nos mais desenvolvidos. O homem que passa o dia inteiro apertando parafusos que Charles Chaplin tão bem caracterizou em Tempos Modernos, não só continua vivo, como talvez mais vivo do que nunca, seja na versão ainda, digamos, primitiva da China, seja nas versões mais sofisticadas que vemos em alguns dos países mais socialmente conscientes por aí.

Mas Kingdom vai subindo vagarosamente essa escada e do “mero” apertador de parafusos, passamos para um trabalhador mais especializado, com um irônico foco alongado em uma fábrica de bonecas sexuais realísticas em que podemos ouvir as funcionárias conversando e discutindo entre si como fazer essa ou aquela característica no manequim um tanto quanto assustador. Quando, mais para a frente, a diretora passa a focar em uma gama de serviços para os ultra ricos na China, com mordomos ou assistentes pessoais que são treinados para aceitar sorridentes todo o tipo de abuso verbal e até físico e em uma influenciadora social completamente ignorante de seus arredores, em uma bela tomada em que suas belas poses para fotos em um sol escaldante são colocadas em xeque pelo trabalhador agachado, fazendo manicure na grama em primeiro plano.

Em tudo isso, vemos crítica à China, o que é obviamente a conclusão mais direta e óbvia do documentário, mas que, como disse, vai muito além disso, sendo perfeitamente possível ver versões do que acompanhamos no documentário em todas as esquinas aqui de nosso próprio país. Basta não ser uma influencer interessada unicamente em seu belo sorriso para as câmeras para perceber, algo que, devo confessar, os ativistas de redes sociais realmente não percebem, pelo menos não como uma realidade bem mais real do que seus cliques selecionados os permitem perceber.

No entanto, enquanto Koyaanisqatsi encontra o perfeito equilíbrio entre imagem e narrativa visual, Ascension luta internamente para contar sua história de maneira fluida e harmônica. O esforço de Jessica Kingdom é sem dúvida alguma do mais alto gabarito, mas faltou à diretora encontrar um ritmo constante, já que ela por muitas vezes não sabe muito bem o quanto mostrar de determinada sequência para que ela passe o recado sem se tornar repetitiva ou sem que a sucessão de sequências basicamente conte a mesma coisa apenas em ambiente diferente, quase que na forma de curiosidades pitorescas que, se pensarmos bem, pode ter o condão de degradar ainda mais os trabalhadores que singram pela tela.

Ascension tem o poder de abrir nossos olhos sobre a China moderna e sobre o ambiente em que todos nós vivemos se formos um pouco além do valor de face do documentário. Aqui, ascender tem conotação direta e inequivocamente negativa, marcando o momento em que, ao finalmente chegarmos no tão almejado – e mítico – topo da escada da cadeia produtiva e de consumo, tudo o que conseguimos enxergar é desolação.

Ascension (EUA, 2021)
Direção: Jessica Kingdom
Duração: 97 min.

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