Ashtray (Cinzeiro, em tradução direta) é o provavelmente quase totalmente desconhecido – especialmente fora do Canadá ou por quem pouco conhece seu autor – resultado de perseverança, de uma espécie de última tentativa em ver seu trabalho chegar a um público maior que seu círculo de amigos, uma maneira de validar uma vocação, de tentar encontrar algum tipo de consolo naquilo que realmente gosta. O canadense Jeff Lemire, hoje provavelmente um dos mais prolíficos e requisitados autores de quadrinhos do Ocidente, capaz de escrever simultaneamente tanto obras de cunho autoral quanto outras dentro de gigantescos universos compartilhados das duas grandes editoras dos EUA (só como exemplos, ele, no momento da publicação da presente crítica, escreve tanto Absolute Flash para a DC Comics como Minor Arcana, projeto seu, para a BOOM! Studios), era um completo desconhecido em 2003 e sua insistência em desenhar e escrever quadrinhos não parecia caminhar em nenhuma direção até que ele decidiu largar de lado uma história grande que escrevia e desenhava, mas nunca acabava, para focar em contos curtos que ele pudesse, somente com a ajuda de sua esposa, recorrer à autopublicação, fotocopiando as páginas e fazendo capas de cartolina com serigrafia.
E foi assim que Ashtray nasceu, com a primeira edição com 300 exemplares e a segunda – e última – com 150, ou seja, muito mais como uma forma de Lemire mostrar para si mesmo que podia escrever e publicar uma obra do que realmente algo que tivesse chance de dar certo de verdade. Usando o bom e velho método da distribuição por consignação que ele mesmo se encarregou de fazer visitando todas as livrarias e comic shops de Toronto e convencendo algumas de estocar um ou dois exemplares de seu trabalho, Lemire, segundo ele mesmo diz, começou a achar seu norte, a realmente arregaçar as mangas para investir em uma carreira que ele queria seguir desde que era criança e lia quadrinhos comprados por sua mãe em uma mercearia do Condado de Essex, onde nasceu e cresceu.
A primeira edição de Ashtray conta com três pequenas histórias, a primeira delas o início da HQ Soft Malleable Underbelly (algo como Submundo Macio e Maleável), justamente a que ele imaginava transformar em uma longa graphic novel, mas nunca o fez. Nela, somos apresentados a Norton Sinclair (protótipo do personagem homônimo que Lemire usaria em Gideon Falls), um homem, talvez cientista, que recolhe lixo e o examina, encontrando conexões mirabolantes entre os descartes mais discrepantes, levando a um início intrigante, mas que, claro, não tem fim, já que o capítulo acaba sem, naturalmente, nenhum tipo de esclarecimento. A segunda história, Left-Right (Esuquerda-Direita), é sobre um boxeador de mais idade que teve sucesso em sua carreira, mas que tentou retornar lutando contra um lutador mais jovem, perdendo o embate. Na terceira e mais estranha delas, There Once Lived a Cosmonaut and a Surgeon (Era uma Vez um Cosmonauta e um Cirurgião), um cosmonauta que não é cosmonauta, mas que se veste como tal e um cirurgião que só é chamado assim porque tem instrumentos cirúrgicos protuberando do peito são amigos para toda a vida, vivendo um dia após o outro entre bebedeiras, lutas e esbórnias em geral, até que o Cosmonauta começa a encontrar um propósito.
Nos três contos dessa primeira edição da HQ, fica evidente a abordagem melancólica e sombria de Lemire, bem mais do que talvez todos os seus trabalhos posteriores, algo que pode ser visto tanto no desenrolar e desfecho de cada uma delas, como em seu traço mais pesado, carregado de espaços negativos totalmente pretos. Mesmo assim, tanto o estilo da arte quanto da narrativa são muito claramente do autor, que parece, já nesse início, um evidente protótipo de si mesmo no futuro, ainda que, claro, ele tenha se esquivado da profunda tristeza que esse seu início evoca e que ele explica em sua autobiografia como resultado de sua incapacidade inicial de lutar contra a ansiedade e depressão ainda jovem, algo provavelmente amplificado por sua falta de rumo e de reais esperanças de que ele efetivamente conseguiria seguir carreira naquilo que adorava fazer.
Na segunda edição, há apenas duas histórias, The Man With No Eyes (O Homem Sem Olhos) e The Big Escape (A Grande Fuga) e, em ambas, há a introdução de um elemento constante em sua bibliografia: o uso de pássaros, normalmente corvos, como presenças menos ou mais importantes. No primeiro conto, que se passa em um mundo sombrio de fantasia, um homem sem olhos manda seu estimado pássaro preto (provavelmente um corvo) em uma missão que ele, então, faz de tudo para cumprir e, no segundo, passado no mundo real, provavelmente no Condado de Essex, uma menina que vive em uma fazenda e é maltratada por alguém que possivelmente é seu pai, depara-se com uma gigantesca surpresa metálica no subsolo. Se a primeira história dessa edição a pegada melancólica onipresente em Ashtray #1 é repetida, com um final muito bonito, mas também muito triste, a segunda tem um inafastável ar esperançoso, com a própria arte de Lemire economizando no preto e deixando o branco imperar. Além disso, A Grande Fuga parece ser um proto-Condado de Essex (agora falo da graphic novel em três partes que marcou o começo efetivo da carreira de Lemire nos quadrinhos), com a fazenda e os personagens ali – com variações, obviamente – sendo muito claramente reaproveitados e expandidos.
É evidente que o maior valor de Ashtray está em nos permitir ver os primórdios de um grande autor moderno de quadrinhos, mas os cinco contos que povoam as edições têm inegável valor estético e narrativo que são capazes de levantar a sobrancelha de quem os lê seja por espanto, admiração ou uma conexão empática com os personagens que desfilam pelas páginas. Não demoraria para Jeff Lemire despontar no mundo dos quadrinhos e acelerar vertiginosamente sua carreira, mas talvez ele não tivesse chegado ao ponto em que chegou sem sua teimosia em ver suas obras alcançarem de qualquer jeito as mãos de alguns poucos leitores em uma aposta de cunho pessoal que mais do que se pagou com o tempo.
Ashtray #1 e #2 (Canadá, 2003)
Roteiro: Jeff Lemire
Arte: Jeff Lemire
Editoria: Dev Singh
Editora: Ashtray Press
Data original de publicação: 2003
Páginas: 30