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Crítica | Assombros, de Zé Wellington

Uma coletânea cheia de boas releituras.

por Kevin Rick
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Assombros, de Zé Wellington, é um daqueles livros que, mesmo sendo uma coletânea de contos, se sustenta como uma obra com identidade clara. O fio condutor não está apenas no gênero, seja fantasia, ficção científica ou horror, mas na forma como esses elementos são transplantados para dentro do Brasil profundo, de sua cultura, de sua memória e de seus conflitos. É um livro que olha para o imaginário global do fantástico e, ao invés de imitá-lo, o refrata pela lente de nosso cotidiano, do nosso folclore e até da história nacional.

O resultado é um mosaico que mistura alienígenas, zumbis, experimentos científicos e monstros famosos, mas sempre amarrados a um território concreto: o nordeste, a política colonial, o interior brasileiro e a precariedade da vida comum. É como se Frankenstein pudesse surgir não em laboratórios europeus, mas na sombra da Inconfidência Mineira; como se criaturas fantásticas não rodassem castelos góticos, mas a rua de uma cidadezinha nordestina, sujeita à violência e à desigualdade. Essa “abrasileiração” da fantasia é a grande força da obra, com releituras e ideias originais muito bacanas.

Wellington trabalha bem a dimensão alegórica. Seus contos muitas vezes têm a aparência de fábulas: personagens que carregam dilemas universais, como ambição, culpa, desejo e medo, mas que, quando transpostos para contextos locais, ganham um peso inusitado. Um conto pode falar de monstros marinhos e riqueza, mas é impossível não enxergar aí uma crítica ao materialismo que corrói relações humanas. Outro pode recontar um mito clássico, mas a escolha de situá-lo em nossa história política abre espaço para reflexões sobre poder, traição e opressão que dizem respeito diretamente ao Brasil.

O mérito está, sobretudo, na forma como o autor dialoga com tradições literárias diferentes sem perder o pé no presente. Assombros não é um livro preso ao exotismo ou ao pastiche, por exemplo. Pelo contrário: mesmo quando evoca zumbis ou universos distópicos, a narrativa tem cheiro, cor e textura do nosso país. Há algo de político e de crítico nessa escolha, ainda que a obra de maneira geral não tenha a mesma profundidade de regionalismo de Mata-Mata. O fantástico aqui não é uma fuga, mas um modo de falar sobre a repetição de nossos dilemas sociais, sobre a dificuldade de romper o status quo, seja ele um sistema corrupto, uma tradição de violência (um conto sobre abuso doméstico é excelente nesse sentido) ou uma memória que nunca se apaga.

Isso não significa que todos os contos alcancem o mesmo nível. Como acontece em muitas coletâneas, alguns textos parecem ideias embrionárias, mais pautadas no conceito do que na densidade dramática, com algumas viradas narrativas muito rápidas, e, claro, alguns contos se sobressaem mais do que outros. De maneira geral, porém, a obra é bem consistente, com uma linha de ironia por muitas das releituras e normalmente com alguma reviravolta interessante ao final das tramas. Mesmo os textos menores funcionam como experimentos que, no conjunto, revelam a amplitude das inquietações de Wellington.

Do ponto de vista estético, chama atenção a habilidade do autor em alternar registros. Alguns contos têm atmosfera mais psicológica, com narrativas em que o real e o delírio se confundem, até um mergulho dentro da mente das personagens que chega a se refletir na própria linguagem. Outros são mais diretos, quase pulp, jogando o leitor em tramas de horror e ação. Essa oscilação entre estilos cria uma leitura dinâmica, que nunca se acomoda em um único tom e que mantém uma cadência divertida “do que vem à seguir”.

Assombros não é uma coletânea que busca perfeição ou unidade total; é, antes, um exercício de imaginação que dá corpo a uma proposta ainda rara na literatura de gênero brasileira: tratar o fantástico a partir de nossos próprios alicerces culturais. Há uma voz aqui que sabe brincar com alegorias, que sabe se apropriar de mitos estrangeiros e devolvê-los ao leitor carregados de sotaque, de memória, de política. O título, aliás, resume bem a experiência. O que o livro oferece não são horrores plenos ou aventuras épicas, mas assombros; lampejos de inquietação, desconfortos sutis, fábulas que não explicam tudo, mas que deixam marcas. Um convite a revisitar nosso imaginário popular à luz do extraordinário. No fim, Assombros é menos sobre monstros e mais sobre nós mesmos. Um retrato do que há de estranho, contraditório e, sim, assombroso na realidade brasileira.

Assombros | Brasil, 2022 
Autor: Zé Wellington
Editora: Draco
112 páginas 

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