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Crítica | Asterix e Cleópatra

por Ritter Fan
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A sexta aventura de Asterix é uma das mais lembradas e mais benquistas pelos fãs e não sem razão. Afinal, ela não só é realmente excelente, com ótimas ideias originais de René Goscinny e desenhos de Albert Uderzo, como ela foi adaptada duas vezes, uma como animação, em 1968, e outra em filme live-action, em 2002.

Como o título deixa bem claro, dessa vez Asterix e Obelix têm que viajar até o Egito, mais especificamente Alexandria, acompanhando Panoramix, que recebe um pedido de ajuda de seu amigo Numerobis, incompetente arquiteto da Rainha Cleópatra que recebe dela a missão de construir um palácio em honra de Júlio César em apenas três meses, depois que ele zomba da capacidade dos egípcios de realizar grandes construções como faziam em sua época de ouro. É a primeira vez que os irredutíveis gauleses saem do continente europeu, portanto, mas não seria a última.

A premissa é simples, mas a execução é, sem dúvida alguma, brilhante. Goscinny trabalha Cleópatra como a rainha mimada que se irrita ao menor sinal de contrariedade. E a comparação entre o Egito Antigo e o Egito já decadente, dominado pelo romanos, é pano para manga, a começar pela aposta de César que justamente parte da premissa histórica que todos hoje conhecemos: os tempos verdadeiramente de ouro do povo egípcio já haviam passado quando a Cleópatra mais conhecida governou o país. Pouco antes do ano zero, os egípcios eram um pálido reflexo de seus ancestrais, tendo passado por diversas invasões, não resistindo primeiro à grega, que estabeleceu a Dinastia Ptolomaica, da qual essa Cleópatra – mais precisamente Cleópatra VII Philopator – foi a última faraó efetivamente ativa e, depois, a romana, com o famoso triângulo amoroso entre Júlio César, Marco Antonio e Cleópatra.

Usando a poção mágica para dar forças aos trabalhadores – que não são escravos, pois levam chicotadas em turnos! – e mexendo no projeto de Numerobis, que não sabe projetar nem mesmo uma escada, Panoramix, então, torna possível a construção do templo. O vilão, na história, é Timetamon, arquiteto rival que, claro, quer o fracasso de Numerobis para tornar-se o favorito de Cleópatra. Com isso, passeamos de Alexandria para o platô de Giza, vemos as pirâmides e finalmente descobrimos que foi Obelix quem arrancou o nariz da esfinge, gerando uma excelente e inesquecível gag, com todos os vendedores de estatuetas da esfinge martelando o nariz de seus produtos, ao som da onipresente onomatopeia TOC, TOC, TOC, TOC, TOC… Mas também passeamos até Luxor e depois de volta à Alexandria em uma viagem geograficamente correta pelo Egito (por exemplo, Goscinny não cai na tentação de mencionar pirâmides em Alexandria, pois elas não existem lá).

Além disso, Goscinny já prenuncia a fascinação que Cleópatra gerava nos homens – ao menos no imaginário popular – salientando seu famoso “nariz”. Aqueles que já tiveram a oportunidade de ver esculturas de Cleópatra entenderão a razão e poderão rir muito da referência, que se tornou uma das marcas desse volume.

E, refletindo o genial trabalho de Goscinny no roteiro, Uderzo se diverte muito na arte ao também se esmerar em apresentar desenhos historicamente corretos da cultura egípcia, sem invencionices, mas com seu toque cômico inconfundível. As brincadeiras visuais dele com a questão da retratação das pessoas de perfil na arte egípcia é engraçadíssima, com Cleópatra reclamando que queria se ver de frente e não de lado. Mas o ponto alto da arte de Uderzo vem nos balões de fala dos egípcios. Sim, balões de fala. É lá que o artista se esbalda em usar hieróglifos baseados nos verdadeiros, mas alterados a seu bel-prazer, para indicar o que eles estão falando (sempre com legendas logo abaixo no quadro). É importante o leitor ter calma e não só passar os olhos nos símbolos. Vale a pena gastar tempo para apreciá-los e compará-los com o que a legenda indica: a simbologia usada permite a dedução do que foi dito, basta um certo grau de atenção e engenhosidade. E isso permeia todo o álbum, desde enormes diálogos, como quando Obelix espanca Pedibis, comparsa de Timetamon, para descobrir sobre o esquema do vilão, até coisas mais simples como a dor de estômago do provador de Cleópatra, desenhado como três fogueiras. É, literalmente, uma obra à parte dentro da obra principal (até cachorro gane em hieróglifos!).

Asterix e Cleópatra é mais um perfeito álbum da dupla Goscinny e Uderzo que merece a leitura e releitura por todos os fãs de quadrinhos e de História. Um verdadeiro tesouro de criatividade que se mantém vivo e engraçado a cada releitura.

Curiosidades:

– Goscinny faz uma enorme gozação com a arte da dublagem e da sincronização dos movimentos da boca.

– Uderzo escreve todo o diálogo dos egípcios (bem, quase todo) com hieróglifos inventados por ele baseados nos verdadeiros, que, na verdade, permitem sua leitura e compreensão.

– Esse é o primeiro volume em que Ideiafix é mencionado pelo nome e tem participação ativa na história, salvando Asterix, Obelix e Panoramix do labirinto de dentro da pirâmide de Quéops.

– Essa é a primeira vem em que os piratas afundam seu próprio navio ao verem os gauleses. Além disso, o capitão, ao final, estranhamente jura vingança contra os gauleses, algo que ele nunca levaria a a cabo.

– A brincadeira sobre a escravidão no Egito tem base histórica. Eles eram mesmo escravos ou trabalhadores livres? Goscinny encontra um meio termo e afirma que eles são livres e eles próprios se chicoteiam em turnos, pois, se não forem chicoteados, não trabalharão. Interpretem como quiser…

– Essa é uma das poucas histórias cujo banquete final na aldeia gaulesa acontece de dia. Além disso, é a única história que tem quadros após o banquete.

– O mistério do sumiço do nariz da esfinge foi revelado: Obelix o derrubou e o enterrou na areia.

– Em determinado momento, olhando para as pirâmides, Panoramix fala “Do alto dessas pirâmides, vinte séculos nos contemplam.” Essa é uma referência à mesma frase, só que dita por Napoleão Bonaparte em sua campanha pelo Egito, em situação semelhante, no platô de Giza. Mas, claro, no lugar de “vinte”, Napoleão falou “quarenta”.

– Há uma breve referência ao famoso futuro suicídio de Cleópatra, quando a trinca principal foge da prisão e parece que vão atacá-la e ela, dramaticamente, diz que vai se matar.

– Asterix oferece seus serviços à Cleópatra, dando como exemplo caso ela queira eventualmente fazer um canal de conexão entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho. O Canal de Suez só seria efetivamente inaugurado em 1869.

– Em determinado momento, um centurião romano comemora pequena e efêmera vitória sobre os gauleses dizendo Ita Diis Placuit. A frase, em latim, significa, em tradução livre “Os deuses foram aplacados” ou, mais modernamente, algo como “foi inevitável”.

Locais:

– Aldeia gaulesa.

– Egito, mais especificamente Alexandria, com passagens no platô de Giza e Luxor pelo rio Nilo. Vemos não só as pirâmides e a esfinge, como a Ilha de Pharos, que continha uma torre iluminada para avisar aos navios que estavam chegando em terra e que hoje, por causa disso, a conhecemos como “farol”.

Personagens (além de Asterix e Obelix):

– Panoramix, druida gaulês, responsável pela famosa poção mágica que dá força sobre-humana a quem a bebe.

– Ideiafix, o minúsculo cachorrinho de Obelix.

– Cleópatra, última faraó do Egito e amante de Júlio César e Marco Antonio.

– Júlio César, déspota romano.

– Numerobis, arquiteto incompetente de Cleópatra que pede ajuda a Panoramix.

– Timetamon, arquiteto rival de Numerobis e vilão da história.

– Erix, filho do capitão dos piratas, apenas mencionado por ele, como tendo sido deixando em garantia em vista do navio novo que ele teve que comprar depois que Asterix e Obelix afundaram o anterior.

– Misamplis, escriba de Numerobis.

– Pedibis, comparsa de Timetamon.

– Provador de Cleópatra (sem nome).

– Ginfis, espião egípcio de Júlio César.

– Saldeândrus, legionário romano.

– Silviusantus, centurião romano.

  • Crítica originalmente publicada em 03 de dezembro de 2014. Revisada e atualizada para republicação hoje, 29/04/2020, como parte da versão definitiva do Especial Asterix do Plano Crítico.

Asterix e Cleópatra (Astérix et Cleopatre, França/Bélgica – 1965)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote (serializada em 1963 e lançada em formato encadernado em 1965)
Editoras no Brasil: Editora Record (em formato encadernado)
Páginas: 50

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