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Crítica | Asterix e o Domínio dos Deuses

por Ritter Fan
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Descontando o estranho Dois Romanos na Gália, as grandes criações de René Goscinny e Albert Uderzo, os irredutíveis gauleses que resistem à invasão romana, ganharam seu primeiro longa animado ainda em 1967, com uma adaptação do álbum inaugural simplesmente intitulado Asterix, o Gaulês. Mesmo sem a participação dos criadores, o filme abriu espaço para que Asterix, Obelix e sua turma ganhassem diversas versões animadas, além de algumas live-action, ao longo das décadas. Asterix e o Domínio dos Deuses segue essa tradicional, marcando a primeira vez em nove anos, desde Asterix e os Vikings, que um longa animado da franquia é lançado.

Louis Clichy, animador que trabalhou em WALL-E e Up: Altas Aventuras, ambos da Pixar, é o grande responsável pelo polimento do trabalho de animação que podemos ver em O Domínio dos Deuses, baseado no espetacular álbum homônimo de 1971, o 17º da série. O design dos personagens respeita os quadrinhos até os mínimos detalhes, indicando um trabalho intensivo e detalhado da equipe de animação, mas com o cuidado de emprestar ao longa características próprias que o diferencia dos anteriores. Com isso, o caráter pitoresco de Asterix (Roger Carel emprestando sua voz ao personagem pela 10ª e última vez), Obelix (Guillaume Briat), Panoramix (Bernard Alane) e toda a turma é refletido integralmente no filme, que ainda se esmera em reconstruir a aldeia dos irredutíveis gauleses, a floresta ao redor e o empreendimento imobiliário batizado de Domínio dos Deuses, que Júlio César (Philippe Morier-Genoud) manda construir aos arredores da aldeia como uma forma de fazer com que os gauleses sejam assimilados à cultura romana.

É particularmente impressionante reparar o quão próxima é essa adaptação de seu material fonte. Normalmente, os longas estrelando Asterix mesclam mais de uma história ou apenas se baseiam de longe nos quadrinhos, mas, em O Domínio dos Deuses, o roteiro de Alexandre Astier, co-diretor, que recebeu colaborações de Jean-Rémi François e Philip LaZebnik, é quase uma transposição página a página dos acontecimentos do álbum. Normalmente, quando há muita proximidade entre material fonte e adaptação, o resultado fica aquém do esperado, mas, comprovando a habilidade de Astier (ator, diretor e roteirista razoavelmente conhecido na França, aliás) e também a atemporalidade da obra de Goscinny e Uderzo, O Domínio dos Deuses funciona de maneira redonda, pecando justamente apenas quando faz uso de licença poética mais para o final, de maneira a alongar a narrativa.

A crítica ao consumismo desenfreado, à lei da oferta e da procura, ao avanço da chamada “civilização”, à ganância e a vários outros comportamentos que infelizmente vemos no dia-a-dia está toda lá, intacta, da forma idealizada por seus autores décadas atrás e, na verdade, mais relevantes hoje do que nos anos 70. Quando os civis romanos que passam a ocupar o condomínio começam a fazer compras na aldeia gaulesa, descobrindo que os preços por lá são infinitamente mais baixos que os praticados em Roma, até nossos heróis são corrompidos pelo dinheiro, passando a gradativamente remarcar suas tabelas e a criar demandas onde não existem. Essa situação gera belas oportunidades para o roteiro se aproveitar do eterno conflito entre o ferreiro Automatix (Lionnel Astier) e o peixeiro Ordenalfabetix (François Morel), o primeiro fumegando de raiva pelas sardinhas mais caras que o segundo passa a vender e, ato contínuo, inventando que sua loja vende antiguidades da Armórica. Além disso, toda a situação anterior, envolvendo o começo das obras dos romanos, com o uso de escravos, é muito bem construída, com material suficiente para cutucar as leis trabalhistas, as greves e a forma como o patrão trata o empregado, sempre com a sutileza elefantina de Goscinny.

Da mesma forma, o roteiro é inteligente quando usa uma saída para minimizar o potencial destrutivo de Obelix que, como todo mundo sabe, ganhou força descomunal depois de, quando pequeno, cair no caldeirão da poção mágica de Panoramix. Com isso, a narrativa ganha equilíbrio e fôlego para chegar até o ponto onde chega, que vai um pouco além do que vemos nos quadrinhos. Em circunstâncias normais, essas modificações seriam até bem vindas, não fosse a repetição que elas acabam gerando no terço final da produção. Nesse ponto, todo o conflito já foi estabelecido e todas as consequências morais dessa “invasão romana” já foram exploradas à exaustão. Quando a inevitável assimilação – quase como os Borgs em Star Trek – acontece, já estamos no campo do bis in idem (para usar a língua de César!) e, mesmo considerando a curta duração da obra, é possível ver sinais de cansaço que, porém, são de certa forma compensados pelas belas sequências de ação e pela adorável relação de Obelix com um garoto romano.

Mesmo derrapando em seu final, Asterix e o Domínio dos Deuses é um excelente exemplar moderno da franquia que mostra fôlego e, mais ainda, revela o quanto o material original, se bem trabalhado, gera frutos absolutamente atemporais capazes de divertir tanto os mais novos quanto os mais velhos em doses iguais, mesmo aqueles que não têm muita intimidade com os personagens (o que, claro, é um pecado, mas que pode ser consertado com a caça aos álbuns da série). Diversão inteligente garantida, o que é exatamente o que Goscinny e Uderzo sempre procuraram fazer com suas imortais criações.

Obs: Crítica originalmente publicada em 06 de abril de 2016. Revista, atualizada e ampliada para republicação em 14 de abril de 2021, como parte do Especial Asterix. 

Asterix e o Domínio dos Deuses (Astérix: Le Domaine des Dieux – França/Bélgica – 2014)
Direção: Louis Clichy, Alexandre Astier
Roteiro: Alexandre Astier, Jean-Rémi François, Philip LaZebnik (baseado em quadrinhos de René Goscinny e Albert Uderzo)
Elenco: Roger Carel, Guillaume Briat, Serge Papagalli, Bernard Alane, Arnaud Léonard, Laurent Morteau, Lorànt Deutsch, Laurent Lafitte, Alexandre Astier, Alain Chabat, Elie Semoun, Géraldine Nakache, Artus de Penguern, Lionnel Astier, François Morel, Philippe Morier-Genoud, Joëlle Sevilla
Duração: 85 min.

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