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Crítica | Asterix e o Grifo

Uma nova era para os irredutíveis gauleses.

por Ritter Fan
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  • Confiram, aqui, nossas críticas para todos os álbuns e filmes de Asterix e Obelix.

Uma pequena coruja chorosa no canto direito do último quadro de Asterix e o Grifo, 39º álbum das aventuras de Asterix e Obelix, homenageia Albert Uderzo, falecido em 24 de março de 2020, e reflete a homenagem que o próprio Uderzo fez a seu parceiro René Goscinny, ao final de Asterix entre os Belgas, com um coelho lacrimoso. Com isso, 62 anos depois da publicação de Asterix, o Gaulês, eis que o mundo vê, pela primeira vez, uma história dos irredutíveis gauleses sem que pelo menos um de seus criadores esteja vivo, sem dúvida uma responsabilidade e tanto para Jean-Yves Ferri e Didier Conrad que assumiram a tarefa de dar continuidade à série desde 2013, com Asterix entre os Pictos.

Se o primeiro álbum da nova dupla ainda testava as águas e, por isso, não arriscou muito, os três seguintes – O Papiro de César, de 2015; Asterix e a Transitálica, de 2017; e A Filha de Vercingetórix, de 2019 – encontraram o tom que nem mesmo Uderzo, ao longo de muitos anos, conseguiu encontrar de maneira constante, revigorando os quadrinhos do baixinho e bigodudo gaulês com seu amigo gor… ops, de ossatura avantajada. Asterix e o Grifo, porém, dá um passo atrás em termos narrativos, ainda que avance na arte.

A grande qualidade dos textos de Ferri é conseguir emular com propriedade o trabalho do grande Goscinny que era mestre em fundir aspectos históricos variados para satirizar o presente, sempre mantendo-se na crista da onda dos assuntos dos anos em que escrevia seus álbuns. O novo roteirista bebe de duas fontes curiosas para construir sua história que gira ao redor do famoso animal do bestiário mítico, metade águia, metade leão, a primeira sendo a menção, pelo próprio Júlio César, em seu Commentarii de Bello Gallico, à criaturas fantásticas, dentre elas o unicórnio, na Floresta de Orcínia e, a segunda, ainda mais antiga, ao poema Arimaspea, supostamente escrito pelo poeta grego Aristeas de Proconeso em que ele relata sua viagem ao norte, com encontros com criaturas estranhas, incluindo o grifo.

Some-se aos elementos acima a conhecida coleção de animais exóticos que eram exibidos – e por vezes mortos – nos anfiteatros romanos e Ferri tem as ferramentas necessárias para construir uma história em que César, convencido da existência do grifo pelo geógrafo Terrinconus (desenhado como uma caricatura do polêmico autor francês Michel Houellebecq), que por sua vez se baseia nas viagens do grego fictício Trodèxes de Collagène, que faz as vezes de Aristeas, o envia, juntamente com um destacamento de soldados comandado pelo Centurião Dansonjus e o venator (gladiador especializado em caça) Jolicursus, para Barbaricum, como as terras do leste eram genericamente (des)conhecidas. Guiados pela bela amazona Kalachnikovna, prisioneira sármata (povo que dominou uma vasta região da Ásia e da Europa, notadamente o sul da Rússia e a Ucrânia), a tropa parte com o objetivo de trazer de volta um grifo, sem saber que Asterix, Obelix, Idéiafix e o druida Panoramix já estavam por lá por terem sido convocados pelo xamã Cèkankondine, que previra a invasão.

Com isso, a narrativa é substancialmente passada nas terras geladas do leste europeu em que os guerreiros são mulheres, com os homens ficando em casa para cuidar dos filhos, em uma inversão de lógica que pode fazer muita gente revirar os olhos para o que parece correção política forçada de Ferri, mas que tem base histórica, pelo que se une o útil ao agradável, com Ferri, com disse, fazendo exatamente como Goscinny e transpondo história antiga para os tempos presentes como uma forma de chamar atenção para assuntos muito atuais. Aliás, o autor não se furta de ostensivamente lidar com as fake newks, com um legionário romano chamado Fakenius soltando as maiores barbaridades que sempre são bem recebidas por seus pares e com os negacionistas, estes representados primeiro por Jolicursus, que acredita que a Terra é plana para desespero de Terrinconus e pelo aldeão Klorokine, que se torna ajudante de Panoramix quando ele tenta refazer a poção mágica que congelara, mas sempre trazendo ingredientes errados.

O passo atrás narrativo que mencionei reside na forma como a história avança sem realmente avançar, com a jornada de Asterix, Obelix e as amazonas para primeiro salvar Kalachnikovna e, depois, Cèkankondine, perdendo o elã e ficando repetitiva, com as gags cômicas perdendo o vigor muito rapidamente e sem que Ferri realmente consiga criar coadjuvantes que engajem o leitor. Interessantemente, como não há uso de poção mágica no álbum, que me lembre a primeira vez em que isso acontece, não há quase nenhuma grande e clássica pancadaria, com o próprio Asterix preferindo esgotar as vias diplomáticas, para desespero das guerreiras sármatas. Somente para ilustrar, basta reparar na quantidade de vezes em que Idéiafix, que parte para correr com os lobos da região, deixando Obelix furioso, é mostrado justamente assim, correndo de um lado para o outro como líder da matilha, com o gaulês de tranças ruivas reclamando o tempo todo e tentando correr atrás de seu cachorrinho. É como um disco quebrado, infelizmente.

Por outro lado, Didier Conrad, com as cores de Thierry Mébarki, dá mais um salto evolutivo em sua arte, talvez agora não só se sentindo mais seguro em seu quarto álbum, mas também sem a supervisão de Uderzo. Há uma muito bem-vinda exuberância nos cenários naturais que o artista desenha que o co-criador de Asterix, por melhor que ele tenha sido – e ele era realmente muito bom – jamais alcançou. A riqueza de detalhes é alvissareira, assim como o uso generoso do branco da neve e da névoa constante para criar quadros de beleza ímpar, incluindo diversos passados à noite, com um sombreamento de se tirar o chapéu. As sequências de ação, sempre tumultuadas – mas no bom sentido -, demonstram a destreza de Conrad em lidar com distribuição espacial e com composição de quadros, algo que pode ser visto na correnteza criada por Obelix quando o destacamento romano atravessa uma ponte e, depois, quando há a revelação da origem do grifo. Não demorará o dia em que o desenhista arriscará ainda mais na impressão de seu estilo, potencialmente quebrando as linhas rígidas das divisões de quadros das páginas, talvez até nos presenteando com splash pages memoráveis.

Asterix e o Grifo é um lindíssimo álbum da longeva coleção das aventuras de Asterix e Obelix que, porém, perde pontos por não oferecer uma história que realmente engaje o leitor e realize o potencial que a arte promete. Mesmo assim, é uma leitura gostosa que definitivamente coloca a dupla Ferri e Conrad como os genuínos sucessores dos grandes Goscinny e Uderzo. Que venha o próximo!

Obs: Absurdamente, com a troca da licença da Editora Record para a Panini e, depois de volta para a Record, os álbuns de Asterix e Obelix deixaram de ser publicados simultaneamente no Brasil desde 2017. Somente em setembro de 2021 é que o 37º da série foi publicado por aqui, sem previsão para o 38º e, claro, este aqui, o 39º que, aliás, foi publicado simultaneamente em nada menos do que 20 línguas. Portanto, a crítica foi feita com base na leitura do original em francês, pelo que o título e os nomes dos personagens novos poderão ser diferentes na tradução nacional, se ela um dia ocorrer.

Asterix e o Grifo (Astérix et le Griffon – França, 21 de outubro de 2021)
Roteiro: Jean-Yves Ferri (baseado em criação de René Goscinny e Albert Uderzo)
Arte: Didier Conrad
Cores: Thierry Mébarki
Editora original: Les Éditions Albert René
Editora no Brasil: não lançado no Brasil à data de publicação da presente crítica
Páginas: 48

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