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Crítica | Asterix e os Godos

por Ritter Fan
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O terceiro volume de Asterix, ainda serializado na revista Pilote, é um dos melhores trabalhos da dupla René Goscinny e Albert Uderzo. Há um equilíbrio perfeito entre piadas e aspectos e críticas históricas, além de uma arte madura, detalhada, bem estruturada de Uderzo, que brinca facilmente com maneiras novas de narrar a história.

Asterix e os Godos, porém, é uma obra que, se o leitor espremer, sairá veneno e, em última análise, uma boa dose de preconceito. Afinal, ela foi lançada em 1963, nem 20 anos depois do fim da 2ª Guerra Mundial, por autores franceses. Com isso, os godos (ou, em português claro, os alemães) são retratados como verdadeiros vilões – bem mais vilanescos que os romanos – uma das poucas vezes que a dupla usou outros povos dessa maneira. Além disso, eles são vistos como um povo beligerante, sequestrador, dominador, torturador e com ânsia de poder. Goscinny, bem mais tarde, chegou até a dizer que se arrependeu da maneira como retratou os antepassados dos alemães, mas a bem da verdade, esse preconceito não é nem tão grave assim e gera piadas impagáveis ao longo de toda a narrativa. Assim, jogando a correção política de lado, esse álbum é uma pérola entre os já preciosos álbuns de Asterix.

Tecnicamente, Asterix e os Godos é uma das poucas continuações diretas escritas por Goscinny. Em A Foice de Ouro, Asterix e Obelix vão à Lutécia (Paris) para comprar uma nova foice de ouro para Panoramix, pois o torneio dos druidas da Floresta dos Carnutes está chegando. E esse é o gancho para a abertura do terceiro volume, que mostra Panoramix indo para lá acompanhado, lógico, de Asterix e Obelix que, porém, têm que ficar esperando por ele na entrada da floresta, já que só druidas podem entrar lá.

No entanto, um grupo do visigodos comandados por Coudetric “invade” a Gália para sequestrar o druida ganhador do concurso – obviamente Panoramix – e, com isso, a confusão é formada. E bota confusão nisso! Com um inteligentíssimo roteiro, Goscinny brinca com a divisão dos godos entre visigodos e ostrogodos (qual dessas é a tribo do leste e leste em relação a que?), com o conceito de invasão (godos podem invadir o país dos godos? Dois gauleses atravessando a fronteira para a Germânia caracteriza invasão?) e, claro, com os traços marcantes dos godos ao longo do séculos, especialmente sua divisão em tribos beligerantes entre si, seu ódio pelos romanos e, chegando ao presente, sua vontade de conquista da Europa. Mas nada fica incólume: da língua (os quadros de fala tem fonte gótica, em genial sacada de Uderzo) às vestimentas (godos só usam peles e os anacronicamente perfeitos pickelhaubes – mais sobre isso nas “curiosidades” abaixo), Goscinny e Uderzo literalmente fazem gozação com tudo, sem esquecer dos romanos, que não sabem identificar os gauleses dos godos e vice-versa, em momentos hilários.

E Uderzo experimenta nos desenhos, pela primeira vez saindo de sua zona de conforto. Há quadros logos que abordam vários momentos separados no tempo (como no que demonstra os romanos caçando os gauleses e deixando os godos livres, leves e soltos para escaparem) e troca de narrativa, com uma página inteira, em prosa (como legendas a quadros), para narrar as chamadas Guerras Asterixianas, depois que Panoramix semeia a discórdia na aldeia dos godos, fazendo com que todos guerreiem contra todos. Além disso, há maior nível de detalhamento e cuidado por Uderzo, que desenha de maneira muito característica cada um dos grupos, tanto em vestimentas quanto em aparência física: romanos, druidas, gauleses e godos. Não há como se confundir, o que torna a confusão romana ainda mais divertida.

Asterix e os Godos é uma deliciosa vingança francesa à dominação nazista e, mesmo que não olhemos sob esse ângulo, é uma história engraçadíssima, com antológicos momentos da longa carreira do bigodudo baixinho gaulês! Imperdível sob todos os aspectos.

Curiosidades: 

– Floresta dos Carnutes: Os Carnutes foram um povo gaulês no centro da Gália independente entre o rio Sena (Sequana) e o rio Loire (Liger). Eles eram bem desenvolvidos, com moeda própria já no século I a.C.. Na era de dominação romana, eles participaram das lutas ao lado de Vercingetorix e acabaram, claro, sendo derrotados, mas nunca foram verdadeiramente assimilados pelos romanos, recebendo do Imperador Augustus uma certa independência que os permitiu prosperar.

– Batatas fritas: Em um daqueles momentos deliciosamente anacrônicos escritos por René Goscinny, Septantesix aparece mergulhando as mãos em óleo fervente e retirando batatas fritas do caldeirão, para demonstrar sua poção de invulnerabilidade. Acontece que, à essa época, a batata não havia ainda chegado na Europa, pois ela viria bem depois, do Novo Mundo, com a batata frita em si sendo inventada pelos belgas.

– Godos: Nome do povo do leste da Germânia, divididos entre Visigodos e Ostrogodos e que tiveram papel decisivo na queda do império romano. Uma das possíveis origens desse povo é na ilha Gotland, na suécia. Genericamente falando, os Godos deram origem ao que hoje conhecemos como o povo alemão e, assim como retratado no álbum, era tribos beligerantes. Mas é claro que, na história, a referência mais evidente é em relação às duas Grandes Guerras.

– Língua dos Godos: Durante toda a publicação, todo balão de fala dos godos é escrito com fonte gótica (a palavrá gótica vem, claro, de godo), mas o que eles falavam nessa época, na verdade, era ainda algo chamado de língua proto-germânica, bem diferente do atual alemão.

– Capacete dos godos: Não sem querer, Uderzo desenhou os capacetes dos godos como pickelhaubes, os famosos capacetes alemães do século XIX e que foram usados até a 1ª Guerra Mundial, com uma espécie de espeto bem no centro.

– Bandeira e símbolos: Procurem, pois acharão. Há suásticas e águias nazistas nos desenhos inclementes de Uderzo.

– Dariorigum – Há menção a essa cidade por um druida. Ela é, hoje em dia, Vannes, localizada na região da Bretanha, na França.

País(es): Gália, mais precisamente na aldeia de Asterix, entre a aldeia e a Floresta dos Carnutes (em tese, entre o Rio Sena e o Loire), na fronteira entra a Gália e Germânia (Alemanha) e na Germânia, mais precisamente em uma aldeia dos visigodos que não tem nome.
Personagens principais (além de Asterix e Obelix): Panoramix, Coudetric (líder dos sequestradores visigodos) e sua gangue: Teodoric, Pasdefric, Histeric e Periferic, Septantesix (druida amigo de Panoramix), General Nompoplus (comandante de destacamento romano próximo à fronteira da Germânia), Marcus Cubitus e Julius Umerus (legionários romanos confundidos com godos), Teleferic (chefe da aldeia dos visigodos), Cloridric (intérprete godo), Eletric e Passemaltric (dois godos influenciados a se transformarem em rebeldes por Panoramix).

  • Crítica originalmente publicada em 12 de novembro de 2014. Revisada e atualizada para republicação hoje, 08/04/2020, como parte da versão definitiva do Especial Asterix do Plano Crítico.

Asterix e os Godos (Asterix et les Goths, França/Bélgica – 1963)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote (serializada entre 1961 e 1962 e lançada em formato encadernado em 1963)
Editoras no Brasil: Record (em formato encadernado)
Páginas: 50

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