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Crítica | Asterix entre os Belgas

por Ritter Fan
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Com exceções de histórias curtas publicadas em formato de compilação posteriormente, Asterix entre os Belgas, o 24º álbum da série, foi, infelizmente, o último escrito pelo grande e inesquecível René Goscinny, que faleceu em 1977, em razão de problemas cardíacos, com apenas 51 anos. Publicado postumamente em 1979, em meio ao começo de uma feia guerra judicial empreendida por Albert Uderzo contra a editora Dargaud e marcando a primeira vez desde o lançamento de Asterix, o Gaulês em 1961 que um ano se passa sem qualquer história nova dos irredutíveis gauleses, o álbum é a sensacional despedida de um gênio e que marcaria o começo da decadência da série em razão dos textos assumidos por Uderzo. Para alguns fãs mais radicais, Asterix entre os Belgas marca o efetivo fim das histórias, ainda que definitivamente não seja para tanto.

A genialidade de Goscinny é revelada aqui a partir da premissa sensacionalmente óbvia que ele pinçou a partir de memorável citação de Júlio César contida logo no primeiro parágrafo de seu primeiro comentário em seu famoso A Guerra da Gália (De Bello Gallico): horum omnium fortissimi sunt Belgae ou, em português, “de todos os povos da Gália, os belgas são os mais bravos”. Claro que Abracurcix, da Gália Celta (especificamente da Armórica), jamais poderia aceitar essa afirmação, especialmente quando ela vem de um legionário romano do acampamento de Laudanum em um contexto que diz que ir para lá é como tirar férias depois do sufoco de lutar na Gália Belga. Apesar de seus compatriotas pouco ligarem, o chefe da aldeia, que lutara na Batalha da Gergóvia (em que os gauleses derrotaram as forças de César), parte enfurecido para tirar satisfações com os belgas e entender o porquê dessa frase de César, no que é acompanhado por Asterix e Obelix, além de Ideiafix.

O que segue daí é o estabelecimento de uma literal competição entre os gauleses e os belgas (todos eram tecnicamente gauleses nessa época, mas vou chamar assim para facilitar minha vida) para ver qual é o povo “mais bravo”, tendo Júlio César, sem seu conhecimento, como juiz. Entre as pancadarias comendo solta contra os acampamentos romanos espalhados na Bélgica, Goscinny faz o que faz de melhor e satiriza, ironiza e brinca sem parar com os belgas, começando pelas diversas tribos que formam os povo belga (citando o poema de Antoine Clesse que afirma que “Belga” é o sobrenome do povo), algo que Goelambix, o Nérvio, co-líder da aldeia com Vandalix, o Menapta, logo esclarece e cuja noção é amplificada pela diferença de línguas entre os dois (e que existe até hoje) com a língua de javali que ambos querem comer e continuando com citações à cerveja como sendo a poção mágica dos belgas; com a invenção da batata frita em uma piada que o tradutor brasileiro se esforçou para traduzir com sentido, mas não conseguiu; com o prato típico belga waterzooï (sem graça exatamente como Goelambix afirma que é, aliás); com a hilária aparição de Dupond e Dupont da série belga As Aventuras de Tintim, de Hergé, em uma simpática “resposta” à aparição de Asterix em Tintim e os Pícaros; com a menção à Bélgica ser um país plano, o que é uma menção à música “Le Pays Plats” (“O País Plano” em tradução direta) do cantor belga Jacques Brel e mais uma infinidade de referências.

Aliás, referência é algo que já começa na dedicatória do volume, que agradece a “amável colaboração aos nossos confrades Victor Hugo, pelo texto, e Pierre Bruegel, o Velho, pela ilustração”. E a razão para isso é que, brilhantemente (quantas vezes eu já usei essa adjetivação, hein?), Goscinny usa uma paródia da descrição da Batalha de Waterloo (na Bélgica, claro, em que Napoleão perdeu de dois dos exércitos da chamada Sétima Coalisão, liderada pelos britânicos) por Hugo em Les Châtiments, antologia de poemas satíricos, para abordar a batalha dos belgas contra a legião romana liderada por César e, por seu turno, Uderzo usa a obra A Boda Camponesa, do pintor belga, para criar um painel de uma página inteira na horizontal retratando o banquete de vitória que os belgas oferecem aos gauleses (um dos vários, aliás).

Em meio a tudo isso, a narrativa avança maravilhosamente bem, com um dos pouquíssimos álbuns da série que conta com participação direta, ativa e constante (a partir de terceiro terço) do próprio Júlio César que arregaça as mangas depois de ser humilhado no Senado pelas derrotas sucessivas que suas guarnições lotadas na Bélgica sofrem tanto pelos belgas quanto pelos gauleses em sua competição. Aliás, falando em César, é muito interessante notar como Goscinny o escreve de maneira a realmente parecer aquele proconsul que liderou a Guerra da Gália e Uderzo o retrata com detalhes excepcionais, demonstrando uma certa reverência ao personagem histórico, ainda que, não tenham dúvida, ele seja alvo permanente de chacota.

Asterix entre os Belgas marca o fim de uma era. As aventuras dos irredutíveis gauleses continuaria – e continua até hoje – mas sem jamais chegar ao mesmo nível de qualidade de quando Goscinny escrevia as histórias. Será que Uderzo deveria ter se resignado e parado com as histórias até em reverência a seu colega de tantas décadas? Não há resposta certa, mas tenho para mim que, como sempre teremos as histórias criadas pela dupla, não há mal em que elas continuassem seja por Uderzo apenas como foi até 2005, seja por Jean-Yves Ferri e Didier Conrad a partir de 2013.

Asterix entre os Belgas (Astérix chez les Belges, França – 1979)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Dargaud
Editora no Brasil: Editora Record
Páginas: 48

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