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Crítica | Asterix entre os Helvéticos

por Ritter Fan
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Foi Georges Pompidou, então Primeiro Ministro francês, que escreveu para René Goscinny e Albert Uderzo sugerindo uma história em que os irredutíveis gauleses viajavam para a Suíça ou Helvécia, como os romanos chamavam a Europa central. E assim a dupla fez, publicando o álbum já com Pompidou na presidência, em uma história que é repleta – até mais do que o normal – de referências específicas do local visitado, em um verdadeiro desfile de brincadeiras que, se o leitor não for europeu ou não conhecer bem pelo menos a Suíça para além do óbvio, poderá ficar perdido.

Na verdade, se existe uma fraqueza, por assim dizer, nesse 16º álbum da série das Aventuras de Asterix, é a forma como as referências escravizam a história e não o contrário, com Goscinny fazendo um trabalho hercúleo para enxertar um sem-número de comentários sobre o queijo suíço (e o fondue, claro!), relógios suíços (inclusive e especialmente o relógio cuco), os bancos suíços, as montanhas suíças, a fronteira suíça e elementos da cultura local como o iodelei, a limpeza absurda e assim por diante. Chega a ser exagerado o que o autor consegue espremer para dentro da história, o que lhe retira um pouco da fluidez, criando uma estrutura episódica.

Mesmo assim, é uma verdadeira delícia ler a história que começa com o envenenamento do fiscal romano Claudius Veredictus pelo governador de Condate, Gracchus Multivirus, que só pensa em gastar rios de dinheiro com orgias e mais orgias inspiradas diretamente de Satyricon de Fellini, por sua vez baseada na obra homônima de Petrônio, escrita em 60 d.C. Querendo livrar-se do romano abelhudo, Multivirus envenena a sopa de legumes de Veredictus que, ato contínuo, pede ao seu leal guarda-costas que corra até a Gália para trazer Panoramix – cujo nome ele já ouvira de Júlio César – para curá-lo. Chegando lá, o Druida diz que precisa da flor Estrela de Prata (ou Edelweiss), que só cresce nos alpes suí…, digo, helvéticos para fazer um antídoto, com Asterix e Obelix prontamente viajando até Genava (Genebra) para obter o ingrediente.

A jornada em si é razoavelmente curta, mas a inspiração de Albert Uderzo nas referências de Goscinny é quase febril, pois o artista não se furta de rechear os quadros com sua visão do que seriam as estradas romanas na Gália se fossem parecidas com as da época em que o álbum foi escrito, época essa que se notabilizou pelo desenvolvimento das vias expressas no país. Os restaurantes e postos de gasolina de beira de estrada são brilhantes e exatamente iguais aos que existem hoje em dia por lá (com água e aveia no lugar de gasolina, claro, assim como mãos cruzadas no lugar do garfo e da faca…). E, quando a dupla chega na Helvécia, o show de detalhes sobre a região que se tornaria o país que conhecemos passa a acontecer em velocidade alucinante, com a apresentação da versão de lá de Multivirus, o romano também adorador de orgias – só que com fondue! – Caius Diplodocus.

É nesse ponto, lá pela metade do álbum, que as referências começam a pesar na narrativa, com Asterix e Obelix entrando em situações cada vez mais esdrúxulas – como dormir dentro do cofre de um banco com naco de queijo “cheio de buracos” – que existem para forçar os comentários sobre a Suíça. Não tenham dúvida que há diversão para todos os gostos, mas o álbum começa a andar aos trancos e barrancos quando todas as características suíças, que vão do mais óbvio ao mais obscuro, como a destruição da ponte de Genebra por Júlio César, passam a dominar a narrativa.

Para compensar, há um tom decididamente mais adulto no álbum, com as citadas menções e detalhamento das orgias que, no lado helvético, incluem bastonadas, chibatadas e afogamentos no lago em caso de perda do pedaço de pão dentro do caldeirão de queijo. Não é nada gráfico – ao contrário, é hilário – mas essas características inexistem nos álbuns anteriores e só voltariam em alguns poucos, o que faz de Asterix entre os Helvéticos quase que uma raridade.

Asterix entre os Helvéticos é um álbum singular entre os da coleção clássica ainda escrita por Goscinny, que viria a falecer sete anos depois. É como uma incansável enciclopédia de referências à Suíça com um molho apimentado de “violência” que fica mascarado pelo humor do escritor e pela arte de Uderzo em sua melhor forma.

Curiosidades:

  • Esse é um dos poucos álbuns que referenciam – mesmo que não diretamente – acontecimentos do imediatamente anterior. Em A Cizânia, Abracurcix cai diversas vezes de seu escudo pelas mais variadas razões envolvendo seus carregadores. Logo na primeira página de Asterix entre os Helvéticos, esses mesmos carregadores são demitidos pelo chefe da aldeia gaulesa que, ato contínuo, convoca Asterix e Obelix para substituí-los, obviamente não dando certo pela diferença de altura entre os dois, o que leva a somente Obelix carregá-lo como se fosse um garçom em um restaurante servindo uma “bandeja de Abracurcix”.
  • Esse é um dos poucos álbuns em que os piratas não aparecem. Mas eles não são esquecidos, já que o questor Claudius Veredictus informa que, durante sua viagem, ele foi atacado pelos piratas que se desentenderam e afundaram o próprio navio (novamente!).
  • Veredictus menciona que Júlio César mencionou o nome do druida Panoramix (que ele confunde com Paisagix) durante uma de suas crises de epilepsia. Há uma grande discussão acadêmica sobre essa questão, se Júlio César realmente sofria de epilepsia, algo que foi deduzido a partir de comentários de Plutarco, historiador e filósofo grego. Há estudiosos que acreditam na epilepsia, outros que César havia sido acometido de malária e outros que seus ataques eram oriundos de um parasita em seu cérebro. O ponto é que essa menção de Goscinny tem base histórica.
  • Um dos participantes da orgia reclama dos tributos aos deuses e diz que “mas isso vai mudar”. E mudaria mesmo, ainda que demorasse ainda alguns séculos.
  • Quando Goscinny escreve números, ele os escreve em numerais romanos. Panoramix pede para Veredictus falar “XXXIII”.
  • Na estrada para a Helvécia, há diversas referências às estradas modernas: o símbolo de restaurante são mãos e não talheres cruzados; os famosos restaurantes que vão de um lado a outro de uma via expressa ganham uma versão romana; aparece um motel (ou carroçotel) que tem tantos quartos quanto estrebarias; a roda da carroça de Asterix e Obelix é consertada por um gaulês que se parece com o logotipo da Antar, petroquímica francesa famosa na época (hoje comprada pela Elf); o posto de gasolina, no lugar de gasolina, tem água e aveia para os cavalos.
  • A limpeza suíça é satirizada a todo momento, começando pela fronteira entre a Gália e a Helvécia, com a placa do lado francês toda suja e musguenta e a suíça absolutamente irretocável e contando com uma lixeira para “detritus” ao pé do poste.
  • Há menção à Assembleia Federal Suíça, em que os líderes dos diversos cantões se reúnem, que mais tarde acaba aparecendo.
  • Há menção à existência de hotéis cercando todo o Lago de Genebra, característica mais verdadeira ainda hoje em dia.
  • Há diversas menções a uma ponte que Júlio César destruiu, “mas que já foi reconstruída”. Esse evento histórico é verdadeiro durante as Guerras Gaulesas e a menção à reconstrução é um comentário sobre a eficiência suíça.
  • Outras características suíças famosas que são referenciadas: pontualidade dos relógios suíços, o relógio cuco, os bancos suíços e sua confidencialidade e discrição absolutas, o queijo suíço (todo furado), o fondue, os Alpes Suíços, os tiroleses e seu canto característico e o uso da trompa alpina, o serviço militar obrigatório suíço, a neutralidade suíça, o famoso festival de jazz de Montreux, a vagarosidade das celebrações suíças (que Obelix acelera aburdamente).
  • Em determinado ponto, Asterix acerta sem querer uma flecha no centro de uma maça na cabeça de um menino suíço. Apesar de o nome não ser citado, trata-se de uma menção ao personagem folclórico de lá Guilherme Tell.
  • Em um dos cofres, de propriedade de um romano, Asterix e Obelix encontram tesouros egípcios, em óbvia menção á pilhagem romanda no Egito.
  • A Cruz Vermelha é referenciada indiretamente quando um suíço trata de um romano que acabou de bater, dizendo “é uma vocação: socorremos todos os beligerantes, qualquer que seja a nacionalidade”.
  • Asterix e Obelix inventam a escalada e também o trenó.
  • Esse é o primeiro álbum em que um romano participa do banquete final. O sortudo é Claudis Veredictus.
  • Um dos legionários romanos, quando ouve o som do iodel, grita desesperado que “eles usam elefantes!” em uma referência a Aníbal e seu famoso exército que usava elefantes de guerra e que quase conseguiu invadir Roma.
  • Latim: cucurbitulate (ventosas usadas em sangrias de tratamentos médicos).
  • Latim: major et longinquo reverentia (“maior reverência ao que está distante”). Citação de Tácito sobre a reverência que sentimos àqueles que estão afastados de nós. A citação ocorre na fronteira entre a Gália e a Helvécia, com os soldados romanos do lado gaulês se recusando a sequer se virarem para ajudar seus colegas romanos que estão apanhando de Asterix e Obelix no outro lado a um passo de distância.
  • Latim: Pax Romana. Literalmente “paz romana”, um período de paz no Império Romano bem posterior a Júlio César.
  • Latim: nunc est bibendum (“agora é beber”). Frase dita por Horácio ao convidar seus colegas para comemorar a vitória romana em Actium. Horácio é inclusive mencionado por um dos legionários depois que seu líder diz essa frase não para comemorar, mas sim para fazer com que todos mergulhem no Lago de Genebra para irem atrás de Asterix e Obelix.

Locais:

  • França/Gália: Aldeia gaulesa e estrada que leva a Genava.
  • Condate (Rennes, na Bretanha, França): cidade governada por Gracchus Multivirus
  • Valetudinarium de Vindonissa (só menção): Hospital Militar de Windish, na Suíça
  • Escola de Massília: Escola de Marselha, na França.
  • Suíça/Helvécia: Genava (Genebra), Lacus Lemanus (Lac Léman ou Lac Géneve ou, em português, Lago de Genebra), mençoes a Aventicum (Avenches), Augusta Rurica (Basileia-Augst), Octodorum (Martigny) e Solo Durum (Soleure).

Personagens (além dos gauleses de sempre):

  • Gracchus Multivirus – govenador romano de Condate (Rennes), que sonega impostos e faz orgias o dia inteiro.
  • Fellinus (só menção) – empresário romano que organiza as orgias de Multivirus. O nome é referência direta a Federico Fellini, um dos maiores diretores italianos (que era mesmo natural de Roma) e responsável pelo filme Satyricon, inspiração direta para as orgias retratadas no álbum.
  • Caius Eucaliptus – coletor de impostos de Multivirus que está no esquema de corrupção do governador.
  • Claudis Veredictus – Questor (funcionário público de baixo escalão, com funções administrativas básicas, aqui especificamente a de fiscal) romano enviado para a fiscalização dos tributos de Multivirus que vive na opulência, mas não paga nada à Roma.
  • Caius Diplodocus – Governador de Genava (Genebra), que também adora orgias, mas as faz com queijo derretido ou fondue em que quem perde um pedaço leva cinco bastonadas, dois pedaços vinte chicotadas e, finalmente, três pedaços, é atirado no lago com um peso amarrado nos pés. E os participantes da orgia fazem questão de sofrerem os castigos.
  • Caius Infarctus – Romano que perde o pão no fondue nada menos do que quatro vezes.
  • Francossuix – Suíço dono do albergue onde Asterix e Obelix se hospedam. O nome vem da moeda suíça, o franco suíço.
  • Zurix – Dono do banco perto do albergue. O nome vem de Zurique, cidade suíça do cantão alemão onde os grandes bancos têm sede.

Asterix entre os Helvéticos (Astérix Chez les Helvètes, França – 1970)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote (serializada em 1970 e lançada em formato encadernado em 1970)
Editoras no Brasil: Editora Record (em formato encadernado)
Páginas: 50

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