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Crítica | Até os Ossos

A beleza e repulsa da autodescoberta.

por Felipe Oliveira
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Formando sua terceira parceria com o roteirista David Kajganich, é interessante que, em cada novo filme que Luca Guadagnino presta sua direção surge um elemento chamativo para ser comentado, e no caso de Até os Ossos, filme que adapta o livro de Camille DeAngelis, é a sua história de romance entre dois canibais. Mas antes de adentrar nessa temática, vale lembrar que o longa navega sob o viés do coming of age, o que é muito bem-vindo em como esse prisma é utilizado inicialmente antes de ser convertido ao choque do horror que envolve a realidade de Maren (Taylor Russell), no excelente exemplo durante uma festa de pijamas onde a troca de carinhos entre garotas é interrompida pela compulsão de Maren em devorar o dedo da amiga ao sentir o cheiro.

Esse se torna o evento propulsor que coloca Maren em sua jornada pelo entendimento do seu passado, visto que ficou tanto tempo reprimida, vivendo a sombra de uma compulsão que não compreende, embora sinta que sempre faz parte de si. Nessa trajetória, é onde ela conhece outras pessoas que compartilham do mesmo desejo irresistível de comer carne, os chamados Devoradores, entre eles, o andarilho Lee (Timothée Chalamet), alguém que tem muito a ensinar sobre resistência, negação e amor. Com essa configuração, é fácil pensar que Bones and All é mais uma história na saturada linha que versa sobre o drama do pertencimento e conexões humanas, e mesmo que seu título sugira uma visceral e quase literal alegoria acerca dos limites que essa busca pode manifestar, temos um filme contido nas sugestões do que poderia ser se consumisse até os ossos.

Olhando para sua filmografia, é compreensível que, apesar de ter um conteúdo assim em mãos, Guadagnino tenha optado por uma abordagem que se destaca pelo caráter sensorial, sedutor e que tenta manter certa beleza e sensibilidade, até em momentos com traços mais mórbidos. Não que as poucas demonstrações de gore sejam um problema — com o ato final sendo a exibição mais extensa disso —, mas diria que há uma restrição no roteiro que opta por não se sujar, em outras palavras, falta ousadia, até mesmo ao explorar a natureza dos impulsos que acompanham os Devoradores, e indo além, dos dilemas que respinga sobre o condenável e moralmente aceitável frente a sociedade. E essa insuficiência imprime uma atmosfera estranha ao longa, uma digestão que parece não saciar e que nunca realmente alcança seu potencial, principalmente no que concerne ao ímpeto sinalizado no título.

O que faz essa concepção tragável em sua estruturação é pela ideia do canibalismo servir, mesmo se comprometer, como ponte de reflexo para outros estigmas suprimidos e hostilizados pela sociedade, talvez a sexualidade — o que entra mais como interpretação — e como Guadagnino condiciona isso a uma busca por pertencimento. A indução de ruptura ao forro teen quando Maren se alimenta do dedo da amiga, volta em breves acenos, seja no calor do primeiro beijo entre Lee e Maren, ou na cena em que trocam olhares, enquanto estão sentados numa mesa de lanchonete — nesse trecho a direção evoca um olhar bobo e apaixonante, a fotografia com planos mais fechados —, nesse sentido, é como Guadagnino aponta que utiliza de referências narrativas para contar essa história com elementos tão discrepantes, que se veste de uma notável indiferença, o que levanta o pensamento se talvez a sensação de pouco aprofundamento seja proposital, uma especificidade de sua abordagem.

Se passando em meados da década de 80, é como se Maren e Lee vivessem o próprio apocalipse numa realidade marcada pela desesperança e desilusão da juventude. Ela, uma garota presa a um convívio de fuga, insegurança e letargia que tinha com o pai, agora parte numa viagem por entendimento pela primeira vez; ele, uma figura com personalidade oposta, também em fuga, mas que aprendeu a mascarar e acreditar que tem a aceitação de viver em solidão sob controle. A beleza encontrada nisso, é que Até os Ossos não se faz só por uma alegoria sobre o conflito interno de corpo, a luta para conter um instinto condenável, e sim sobre duas pessoas que se dedicam a amar e viver incondicionalmente, acima das diferenças e fantasmas do passado.

Por vezes um road movie de encontros e desencontros, uma odisseia de cores dessaturadas marcada pela sensação de fuga que contrapõe a trilha de sangue deixada pelo jovem casal que pulsa em efervescente paixão, uma trilha melancólica que acompanha o exercício contemplativo na transição entre enquadramentos, Até os Ossos pode decepcionar ao encorpar ideias que não passariam das linhas de sugestões — como o surgimento de outros Devoradores, que se limitam a função expositiva do roteiro —, mas, ainda assim, vale como um mórbido e sensível conto sobre autoaceitação e autodescoberta, uma ode visceral a se permitir, com ossos e tudo.

Até os Ossos (Bones and All – EUA, 2022)
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: David Kajganich (baseado em romance de Camille DeAngelis)
Elenco: Taylor Russell, Timothée Chalamet, Mark Rylance, André Holland, Kendle Coffey, Chloë Sevigny
Duração: 131 min.

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