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Crítica | Bacurau

por Gabriel Carvalho
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“E quem nasce em Bacurau é o quê?
É gente.”

Grandes ficções científicas se iniciam com a Terra sendo vista do espaço sideral, em imagens que capturam, em alguns casos, uma grandiosidade prestes a se submeter a avanços extraterrestres. Os planos se aproximam do planeta, redondo e azul, mas costumeiramente se direcionam para o seu hemisfério norte, a sua América do Norte e então os seus Estados Unidos. Em contrapartida a esse padrão, o longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles enxerga um outro lugar do Planeta Terra, presente no seu hemisfério sul, na sua América do Sul, chamado Brasil e, mais especificamente, Bacurau. Logo, essa poética abertura concretiza questões fundamentais da obra, como, em primeira instância, a consolidar enquanto parte do chamado cinema de gênero. Ora, a maior inspiração do longa é justo um dos maiores nomes americanos deste cinema: John Carpenter, criador de clássicos aqui reinterpretados. Porém, mais importante que isso, marca-se um significativo abrasileiramento. Enquanto mais ninguém enxergaria essa pequena cidade do interior, longe de tudo, a obra dos cineastas a destaca, como o centro das atenções. Os seus olhos capturam não a grandiosidade da Terra, muito menos o poderio norte-americano – que supõe-se ser capaz de vencer as mais temíveis invasões alienígenas -, mas a realidade dos pequenos: a sua cultura, a sua raça, o seu passado, a sua violência, a sua cordialidade, a sua herança e o seu ódio.

“Vim aqui só pra dizer”

Em uma cidade que, de repente, some dos mapas, tornando-se impossível de ser encontrada em qualquer registro digital, Mendonça e Dornelles a resgata. Bacurau, no seu longa homônimo, não é um mero cenário no sertão de Pernambuco. A cidade, porém, é a real protagonista da sua própria história, um personagem principal que não é mocinho, mas também não é vilão, no entanto, como aponta uma das passagens mais marcantes da obra, é gente. É por isso que, apesar da chegada de Teresa no lugar principiar uma relevância a mais para o papel interpretado por Bárbara Colen, este não é o caso de um filme com personagem principal, em que o enredo gira em torno dele. Do contrário, temos personagens principais, pois cada um dos moradores da região ocupa um espaço na construção de uma unidade, representada por passagens precisas que sugerem a força de Bacurau enquanto coletivo. Mesmo assim, os indivíduos introduzidos, em igual, possuem as suas particularidades. Nisso, Sônia Braga, vivendo Domingas, surge como uma pessoa problemática, apenas para, momentos depois, revelar ser também parte crucial do todo: a médica, que, numa cena especial de reunião, aconselha os demais moradores. Logo, Bacurau possui de fato os seus confrontos internos – as razões para Domingas surgir em meio a esperneio – e morais especiais – a prostituição tem espaço na cidade -, pois o roteiro se presta a tornar críveis teias bem complexas.

Mas Bacurau é, na verdade, um lugar de mentira, criado para o cinema e que não existe no mundo real. Como os cineastas fazem questão de frisar, contudo, a cidade tem história, tem passado e tem herança, como tantas outras do sertão, do Brasil e do mundo. Na sua apresentação, em que encontra-se primeiramente desértica e aparenta não possuir vida, todos os seus moradores, no entanto, saíram de suas casas para lamentar a morte de Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), a matriarca da região. Mendonça e Dornelles, assim sendo, iniciam o longa-metragem pensando a riqueza cultural de Bacurau, a expressividade do seu legado, que desponta inclusive como uma noção sobrenatural, a perpetuar na eternidade mazelas, porém, que não param de ser combatidas. E a proposta de contextualização ganha mais camadas, as quais não precisam ser aprofundadas em minúcias para serem sentidas como parte de um universo rico e pulsante. O prefeito Tony Jr. (Thardelly Lima), no caso, acompanha a marginalização da educação, o sucateamento da saúde e o escanteamento do povo. Quem que cuida dessa gente de Bacurau, assim sendo, se ninguém presta atenção em suas questões? Eles mesmos. Se precisam contrapor o político, o contrapõe juntos. Um olhando o outro, há terra até para anti-heróis terem prestígio entre os seus, importantes em um local largado às traças, ao passo que, no exterior, são percebidos como criminosos – e são.

“Ninguém há de me calar”

Em contrapartida, a contextualização imagética é o que marca a direção como excepcional. O cuidado que os cineastas possuem com o poder das imagens, desse modo, corrobora mais uma vez a obra à marcante filmografia de John Carpenter – além dos usos de sintetizadores na trilha-sonora, com composições extraídas diretamente da carreira do artista. Lunga (Silvero Pereira), por exemplo, não precisa de muitas apresentações verborrágicas para se tornar sujeito relevante, pois apenas a maneira como encara uma câmera – um olhar ameaçador, que os próprios diretores parecem temer – fomenta uma iconografia particular. A primorosa condução dos atores sustenta, em paralelo, significados intrínsecos às variações comportamentais – da raiva à melancolia. Em contrapartida, outros elementos da obra, como o teor misterioso do cerne, são respaldados por explicações expositivas, que redundam o que as cenas por si só já sustentavam. O longa não está interessado em uma quantidade inumerosa de interpretações e assume uma limitação temática – ainda que sejam muitos temas -, mas ela poderia ser inserida sem quebrar a estrutura tão pura do cinema que só se explica enquanto cinema. Até mesmo a montagem se permite ser notada, unindo diversos planos como se eles se complementassem em um só. Pois consome-se, cena a cena, a anterior, assim como Mendonça Filho e Júlio Dornelles consomem o cinema deste mestre do terror.

Porém, ao passo que O Enigma do Outro Mundo, uma das obras-primas de Carpenter, iniciava-se com um objeto não-identificado adentrando na atmosfera terráquea, Bacurau, por sua vez, introduz um satélite artificial, ou seja, algo nosso, humano, mas responsável por tantas paranoias quanto o monstro transmorfo. Ora, Carpenter, mesmo usando o gênero como meio, já era cineasta político nos anos 80, só que as questões tratadas por ele eram outras, não brasileiras. Por conta de tantas inspirações no cineasta, compreende-se que tornar brasileiro, aqui, não é se apropriar ou roubar. Pelo contrário, temos uma transformação, com agressivos toques vingativos – uma revanche ao imperialismo -, daquelas imagens tratadas pelo cineasta norte-americano. Diante disso, torna-se até complicado tentar apontar um só gênero para Bacurau. Ficção científica, por causa de um certo objeto não-identificado; ação, que se evidencia por tiroteios; horror, em vista da presença de uma ameaça desconhecida; suspense, em meio às incertezas provenientes dos muitos acontecimentos estranhos; fantasia, vide um quê místico por detrás do psicotrópico usado; crime, por conta de se ultrapassar as morais vigentes; ou mistério, ocasionado pelo desaparecimento da cidade no mapa? Dessa quantidade enorme de classificações, existe lugar inclusive para o musical encorpar um segmento com ares cômicos, em que se expande a cultura da região pelas canções de um violeiro.

“Se alguém tem que morrer.”

Por conta do quão próprio se mostra o longa, o jeito, portanto, é criar um gênero específico para o cinema apresentado por Mendonça e Dornelles: um gênero brasileiro, sobre a gente brasileira. Os cineastas engoliram a expressão “cinema de gênero”, como pede a antropofagia, e tornaram isso uma outra coisa: tão singela quanto a canção de Caetano Veloso que surge na primeira cena da obra através da versão interpretada por Gal Costa, e tão brava quanto o pássaro homônimo que sai à noite na cidade. Entretanto, que seja então Bacurau, para se adequar a um gênero apenas e possibilitar um pequeno exercício argumentativo, parte do cinema de ficção científica. Os eventos se passam em um futuro, ainda que não tão distante, distópico, ainda que em meio a uma distopia do sertão. As estradas e construções cinzas das grandes metrópoles, que são mescladas a uma tecnologia excessivamente imaginativa, são trocadas pela vastidão do horizonte, muito mais perto, então, de Mad Max, pela ambientação. Mesmo assim, o longa não seria realmente uma obra de invasão alienígena, mas muito mais de recepção de alienígenas. Como se qualquer um pudesse chegar e visitar essa pequena localidade perdida no mundo, a mesa está pronta para o café – a cena mais emblemática com a personagem de Sônia Braga concretiza uma comunidade tanto de braços abertos para receber os visitantes quanto de braços cruzados para resistir, caso necessário.

Em meio a retomada de uma herança tipicamente brasileira e a urgência de ameaças externas que promovem mais e mais mistérios no decorrer do primeiro ato, Bacurau cresce, mesmo pequena, em vista da sua resistência, executada da maneira como a cidade fora ensinada. Dos americanos, Mendonça e Dornelles só querem mesmo o John Carpenter e o cinema do país – como aqueles discos voadores de filmes antigos -, e para os assimilar a um novo cinema, puramente deles, em características, em gêneros, em sentimento, em personagens e em raiva, muita raiva. O cerco, por sua vez, é uma repaginação de um dos primeiros clássicos do cineastas – relembrado também na morte de um menino. Porém, a execução segue um raciocínio que é brasileiro, um legado que é severino, uma dor que é do sertão. Enquanto o artista americano se entreteria mais – como o seu povo bem conhece – com a violência  – , o brutal gera impacto neste longa pela secura dos cortes. Existe a catarse e ninguém se diverte com ela, mas se engrandece, pois é parte de um museu que o povo não tem vergonha de apresentar, porém, forasteiro algum se importa em conhecer. Acácio (Thomas Aquino) não quer ser Pacote, mas precisa ser Pacote. Já Carpenter nem mesmo é mais Carpenter, entretanto, João Carpinteiro – como aponta o nome da escola. Esse cinema brasileiro, por isso, mais do que nunca, não é para gringo ver, aplaudir e premiar. É cinema para gringo temer.

“Que seja pra melhorar”

Bacurau – Brasil, 2019
Direção: Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sônia Braga, Udo Kier, Jonny Mars, Chris Doubek, Alli Willow, Brian Townes, Julia Marie Peterson, Karine Teles, Antonio Saboia, Bárbara Colen, Thomas Aquino, Silvero Pereira, Clebia Sousa, Zoraide Coleto, Luciana Souza, Edilson Silva, Wilson Rabelo, Márcio Fecher, Rubens Santos, Valmir do Côco, James Turpin, Lia de Itamaracá, Suzy Lopes, Buda Lira, Fabiola Liper, Charles Hodges, Jr. Black, Thardelly Lima
Duração: 132 min.

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