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Crítica | Bando à Parte

Destinos entrelaçados.

por Luiz Santiago
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O fascínio de alguns diretores europeus por filmes americanos de gângster conseguiu gerar homenagens e até mesmo definir alguns caminhos estilísticos que são um verdadeiro presente para o espectador. Nos anos 1960, temos casos muito interessantes de experimentos cinematográficos com esse gênero, na Europa, especialmente sob uma ótica própria, como aconteceu na Alemanha, com Fassbinder dirigindo O Amor é Mais Frio que a Morte (1969), e na França, com Godard. É verdade que o cineasta já vinha cercando e explorando o cinema de gângster desde os seus primeiros passos atrás das câmeras, mas isso só foi realizado como uma homenagem direta e aberta ao gênero em Bando à Parte, lançado em 1964, mesmo ano em que também estreou outro de seus filmes — bem menos conhecido –, Uma Mulher Casada.

Em Bando à Parte, Godard, que se baseia em Fool’s Gold, de Dolores Hitchens, conta uma história que perpassa diferentes emoções e estágios de relacionamentos interpessoais, em diferentes esferas. Uma história de dois amigos que de repente se transforma num drama com um triângulo amoroso, mais ou menos parecido com o Jules e Jim de Truffaut, porém com um nível de caos e com intenções que permanecem mais tempo indefinidas, mostrando os personagens em situações divisivas e exibindo sentimentos que são apenas uma ponte para outro lugar. Aliás, eis aí uma das chaves do longa: o jogo de representações. O diretor consegue utilizar a narrativa fílmica para mostrar como a ânsia de cada um desses indivíduos cresce e se torna impulso para eventos que tendem a levá-los à tragédia.

Como muitos dos personagens de Godard, Odile (Anna Karina), Arthur (Claude Brasseur) e Franz (Sami Frey) representam impulsos destruidores ou estão fascinados por uma ideia absoluta de liberdade, por isso não conseguem medir os perigos que correm, abrindo as portas para situações perigosas. O encontro e a relação do trio começa com um flerte numa aula de inglês e vai progressivamente ganhando fôlego e densidade, mudando o núcleo de interesse amoroso de Odile e jogando os personagens em distintas encruzilhadas morais e sentimentais. E a despeito dessa maior densidade no tratamento dos personagens, o diretor não pesa a mão na maneira como exibe essas relações na tela. Há uma leveza muito grande em Bando à Parte, e mesmo nos momentos de violência ou das cenas de contexto que “sobram”, em termos de conteúdo e sentido, o filme consegue transmitir o seu impulso jovial despreocupado e nos faz entender a narrativa, pensada para dar conta dessas três vidas em um furacão de eventos.

Ao longo dessas experiências, Godard realiza um trabalho de edição de som e uso de trilha sonora capaz de nos fazer notar que existe algo muito diferente na tela, só que sem manipulações estéticas desafiadoras, o que faz deste filme um dos mais acessíveis do diretor para o grande público, embora eu pense que todos os filmes que ele dirigiu na década de 60 sejam perfeitamente acessíveis. Dessa brincadeira com o som e seu sentido dramático, nasce a inesquecível cena do “um minuto de silêncio” (que dura 36 segundos) e o som de um tiro de verdade quando um personagem aponta um dedo em formato de arma para o outro. Se adicionarmos aí o aspecto físico e de aproveitamento do espaço cênico, poderemos falar da icônica e muito referenciada cena da dancinha no bar; do recorde de corrida no Museu do Louvre e da cena de diversão no parque.

A ambição de Arthur e Franz é apenas mais um ingrediente da ebulição da alma que eles carregam, entretanto, o dinheiro a ser roubado não é exatamente o cerne de todas as coisas importantes para a dupla. Nós vemos como o plano, os sentimentos e o comportamento de ambos vai mudando ao longo do caminho, tendo Odile como uma provocadora de novos desejos e caminhos. A montagem paralela, ao mostrar a tragédia para um e a “vitória do amor” para outro, é uma interessante risadinha cínica do diretor a respeito dessa relação. Aliás, ele não só fez questão de deixar o espectador perceber a artificialidade de tudo aquilo, como não se furtou em colocar uma grande quantidade de reais tendências comportamentais e destinos de pessoas no filme, para gerar o sentimento dúbio de um sonho que tem tudo para ser real… ou uma realidade que tem tudo para ser um sonho. A grande vitória de um filme como experiência, não apenas por seu conteúdo tão próximo de nós, mas principalmente por sua forma, pela maneira como tudo isso nos é mostrado.

Bando à Parte (Bande à part) — França, 1964
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard (baseado na obra de Dolores Hitchens)
Elenco: Anna Karina, Danièle Girard, Louisa Colpeyn, Chantal Darget, Sami Frey, Claude Brasseur, Georges Staquet, Ernest Menzer, Jean-Claude Rémoleux, Michel Delahaye, Louis Jojot, Claude Makovski, Michèle Seghers
Duração: 95 min.

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