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Crítica | Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera

por Luiz Santiago
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estrelas 4

O exercício que o escritor paulistano Daniel Galera faz em Barba Ensopada de Sangue (2012) é acompanhar, de maneira distanciada, a saga de um homem em busca (ou fuga) de si mesmo, a jornada penosa e ao mesmo tempo deslumbrante de um professor de educação física que se refugia numa pequena cidade do litoral de Santa Catarina entre 2007 e 2008 e lá encontra muito mais do que pretendia achar.

Diferente da relativa simplicidade urbana de Até o Dia em Que o Cão Morreu (2003), Galera investe aqui em uma densa jornada física, filosófica e psicológica por trilhas enlameadas, cavernas, lendas urbanas, rancor e sangue. O personagem principal não tem seu nome revelado e isso já é um desprendimento importante para a história, condição de anonimato que vem bem a calhar com a sua patologia de não reconhecer o rosto das pessoas. É como se o autor colocasse inúmeros pontos de interrogação em torno do jovem atleta sem muito exercício intelectual e atormentado por um vazio e uma curiosidade que o levará ao lugar onde ele próprio acabará se tornando uma lenda.

O livro tem uma cadência episódica de acontecimentos, abrindo a história com uma visita do protagonista ao pai e a introdução do primeiro símbolo real da trama, a cadela Beta. Daí partimos para o balneário de Garopaba, os encontros amorosos frustrados do protagonista e o fantasma do avô que paira sobre os cochichos dos habitantes. Utilizando a necessidade de preencher o vazio quase mortal de sua vida, o protagonista tentará encontrar pistas sobre o assassinato brutal do avô Gaudério, para então ver-se novamente diante de um ponto de interrogação.

Em dado momento do livro, o leitor percebe que são negadas quase todas as felicidades comuns de uma vida ao protagonista de Barba Ensopada de Sangue. Nós entendemos e simpatizamos com seus conflitos, nos debatemos com algumas de suas ideias, esperamos que ele encontre alguma coisa de substancial em sua busca e, quando isso de fato chega, o autor nos impulsiona a querer que ele fuja das respostas. É a frustração como mote de existência que se coloca no alto do texto e segue até o final do livro, vez ou outra pontuada por um fugaz momento de felicidade.

O realismo cru e a alta carga descritiva da obra podem incomodar alguns leitores, mas nenhuma das duas coisas derrubam o seu valor. Mesmo que o autor exagere aqui ou ali em seus parágrafos de contexto geográfico – momentos que de fato não acrescentam nada à história –, seu ritmo narrativo é preciso e intercalado por ágeis cenas de ação, diálogos ou uma reação em cadeia ao que então se descobriu a partir da descrição anterior, o que, ao menos em concepção, justifica a larga estratégia descritiva.

Particularmente tenho um problema maior com o desfecho da história, não por achá-la ruim, mas por acreditar que, dada a teia bem construída de acontecimentos ao logo das mais de 400 páginas, há um vácuo desnecessário e muitas janelas que permaneceram abertas sem necessidade.

Não digo isso em relação ao destino do protagonista. Há uma indicação óbvia do que acontece com ele no final de tudo e isso estava perfeitamente claro desde a mítica relação com papel escrito, dos sonhos de um certa senhora, dos sonhos de tesouro enterrado de uma certa namorada… É como se Garopaba fosse um macabro Reino Encantado e coisas impossíveis acontecessem inadvertidamente. Mas quando falo em vácuo e reticências, refiro-me ao longo diálogo final que o protagonista tem com Viv e o the end logo em seguida, sem a abertura de um leque para os outros personagens, um ponto que ao menos em alusão deveria ser necessário.

A despeito disso, Galera fecha Barba Ensopada de Sangue com um tom apropriado dentro de seu universo, deixando-nos um pouco desconcertados com a volta em círculos que o atormentado (ex)barbudo dá e a desesperança meio predestinada que se estabelece nas últimas páginas. Barba é um livro forte e denso para leitores que não se incomodam em ter atiçadas um pouco de suas angústias pessoais. Uma jornada selvagem para um encontro que, como sempre, poderia ter se dado sem tanto trabalho, mas que, por se tratar de um personagem humano e desnudado de vaidades quando se trata de assumir coisas para si mesmo (até suas próprias dúvidas), era o único caminho possível a ser tomado. Isso nós entendemos bem.

Barba Ensopada de Sangue (Brasil, 2012)
Autor:
Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 423

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