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Crítica | Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades

O único caminho possível para o cinema de Iñárritu; ou, eu gostava de seus filmes até esse momento.

por Gabriel Zupiroli
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A trajetória do cinema de Alejandro González Iñárritu possui um aspecto transnacional evidente. Seu primeiro longa-metragem, Amores Brutos (2000), foi feito inteiramente no território de origem do diretor, o México. Seus três filmes seguintes – 21 Gramas (2003), Babel (2006) e Biutiful (2010) – foram produções que mesclaram diferentes nacionalidades, línguas e palcos narrativos, transitando entre Europa, América e Ásia. Por fim, Iñárritu, já estabelecido nos Estados Unidos desde os anos 2000, realizou suas duas últimas obras em ambiente totalmente norte-americano – Birdman (2014) e O Regresso (2015). A partir dessa localização geográfica, cabe-nos perguntar: onde se encaixa seu mais novo filme Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (2022)? O filme existe justamente no espaço que se espera de toda a carga supracitada: no entremeio, no ir e vir do (auto)exílio, na busca de sua própria localização.

Silverio é um jornalista e documentarista mexicano que vive nos EUA há quinze anos. Prestes a receber um prestigiado prêmio de jornalismo neste país, retorna em viagem a seu local de origem e é obrigado a lidar com os questionamentos que sempre o envolveram em relação a sua posição. Onde se localiza o sujeito que sai, que voluntariamente se exila para uma nação que sempre subjugou sua própria? É sobre estes tensionamentos que se edifica Bardo, através de um olhar que anseia uma busca não apenas pessoal de certas angústias da intimidade, mas também na compreensão totalizante da própria História refletida nos detalhes complexos do sujeito desterritorializado.

À parte toda a discussão que remete às questões de autoria e autobiografia relacionadas à obra – que claramente possui reflexos de localizações autobiográficas -, Bardo é um filme que se solidifica sobretudo nas certezas. O que, de certa forma, é curioso por justamente engendrar uma narrativa cujo cerne são as angústias existenciais de um sujeito repleto de incertezas. Paradoxalmente, Iñárritu escolhe moldar o plano como uma espécie de espaço teatral muito bem calculado no qual a encenação se apresenta menos como uma condução discursiva e mais como uma tentativa de ilustrar sua própria condição imagética. É nesse sentido, por exemplo, que a opção pelas incursões absurdas, fantasiosas e oníricas se apresenta de maneira pasteurizada, como produto de um cinismo repleto de consciência por trás da imagem. Ou seja, o fantástico de Bardo surge muito menos como elemento naturalizado em meio à mise-en-scène do que como dispositivo contraditoriamente condutor e acessório, que se insinua ora como mecanismo-guia, ora como objeto puramente ilustrativo de uma ciência. Os vôos de Silverio, os lapsos temporais que conectam temporalidades e as representações exageradamente metafóricas da imagem literal são exemplos concretos dessa forma que a direção encontra de lapidar a imagem que se diz autóctone, mas que atravessa qualquer possibilidade de naturalidade em função de um estado impostor. O absurdo, para Iñárritu, existe sobretudo como desculpa, como técnica, e menos como filme, como discurso.

Esse processo faz, sem dúvida, todo o sentido se olharmos para a evolução do cinema do diretor, para a transmutação no seu trato da imagem ao longo do tempo. Existe cada vez mais uma solidez plástica que, ironicamente, quase reflete justamente sua trajetória geográfica pessoal. Nessa leva, agarrar-se às certezas encontra seu ápice na falta de certa sensibilidade na condução de Bardo. É como se, após todo o esgotamento das obras anteriores, restasse neste filme apenas resquício, resíduo mecânico. O que, novamente, contrasta radicalmente com o subtexto do filme, com suas tentativas de propor um olhar sensível às angústias de tal sujeito perdido em sua própria localização.

Em dado momento do filme, Lorenzo, o filho de Silverio, diz à mesa, em espanhol, “O que importam as raízes, pai?”, para em seguida responder em inglês que “Todos sabem que a gente vem de algum lugar”. Curiosamente, essa enunciação da personagem talvez possua a maior carga simbólica da obra. A negação da importância que o protagonista dá à sua dualidade de origem apenas reflete sua condição paradoxal em relação à pertença. No ir e vir por diferentes territórios, seu ser se encontra já diluído em meio às espacialidades e temporalidades perdidas, amalgamadas, que se auto anulam. E a mistura dos idiomas na enunciação apenas corroboram para tal posição. Na contramão de toda a condução do filme, Bardo acaba por se encontrar precisamente na perda, na tentativa e erro, mas que para sobretudo no erro. Quando Iñárritu olha para seu passado e a História que perpassa seu país e seu povo, esgota justamente qualquer sinceridade na maneira de capturar essa transversalidade. O malabarismo visual da obra, seu absurdo plástico e sua pretensão totalizante demonstram que, no fim das contas, Silverio nunca deixou de existir para si mesmo – e sua “jornada espiritual de autoconhecimento” apenas reverbera isso. O diálogo com Hernán Cortés, por exemplo, respira esse posicionamento: os corpos indígenas e toda sua carga histórica não deixam de ser, enfim, objetos cênicos de sua própria obra.

Bardo sem dúvida é um filme que se encaixa perfeitamente na evolução do cinema de Iñárritu. É a perpetuação máxima das certezas e, simultaneamente, o abandono completo de qualquer esforço de sinceridade. Pior, é um filme que procura dizer, mas se esgota em seus próprios dispositivos, em sua própria encenação. É, de fato, uma falsa crônica, e provavelmente sim, de algumas verdades. E até mesmo em seu momento final carrega toda essa carga simbólica em fazer um movimento extremamente consciente e óbvio, o retorno circular. Ou talvez seja a obra mais genial do século XXI se toda sua essência for, enfim, a própria falsidade.

Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades (Bardo, falsa crónica de unas cuantas verdades) – México, 2022
Direção: Alejandro G. Iñárritu
Roteiro: Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone
Elenco: Daniel Giménez Cacho, Griselda Siciliani, Ximena Lamadrid, Íker Sánchez Solano, Luz Jiménez, Luis Couturier, Francisco Rubio, Andrés Almeida, Clementina Guadarrama, Jay O. Sanders, Noé Hernández
Duração: 159 min.

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