A novela Bartleby, o Escrivão teve dois momentos originais de publicação, o primeiro, no periódico Putnam’s Monthly Magazine of American Literature, Science and Art, entre novembro e dezembro de 1853. O segundo veio com algumas modificações, em 1856, na coletânea Os Contos da Piazza, que além de Bartleby trazia as seguintes tramas: Benito Cereno, As Encantadas, A Torre do Sino, O Homem do Para-Raios e A Varanda. Sendo uma obra posterior à icônica Moby Dick (1851), Bartleby, o Escrivão carrega uma marca forte de maturidade de Herman Melville, sendo uma narrativa concisa, cheia de detalhes importantes e amparado por um conteúdo que abre fartas possibilidades de interpretação, talvez até pelos buracos de motivação e pela maneira como o escritor é impiedoso ao mostrar como o ambiente do trabalho, em certos aspectos, em certas exigências e numa determinada dinâmica, destrói (em vida) e depois mata o indivíduo.
A excelente edição brasileira da Editora Antofágica (lançada em 2023), pela qual li a novela, traz textos de apoio que exploram justamente essa extensão da obra de Melville para além de um drama jocoso e estranho sobre um escrivão que passa de um funcionário-modelo (a despeito de sua reclusão e distanciamento emocional num ambiente de trabalho com verdadeiros arquétipos do mundo dos negócios) a um aparente “preguiçoso rebelde”, alguém que não trabalha e simplesmente se recusa a obedecer às ordens de seu patrão. Antes da entrada de Bartleby em cena, Melville nos faz entender como e o quê era aquele local de trabalho, assim como nos dá informações sobre o narrador (que guia toda a a novela, em primeira pessoa) e sobre os três principais ocupantes daquele lugar, com momentos específicos de ira e calmaria e bom ou mal exercício de suas funções. É um lugar-comum, em termos de espaço de trabalho. Um dos escritórios que conhecemos aos montes, com seus “tipos”, suas particularidades, regras e tendências. Até que chega Bartleby. E toda a dinâmica, assim como a vida das pessoas, se transformam.
A tese central da obra é a mudança para pior do protagonista — que, se for analisado sob a luz das doenças mentais e condições emocionais de hoje, teria uma boa lista de coisas para tratar — e dos homens que trabalham com ele. Notem que há inúmeras nuances a serem consideradas aqui, desde as condições de trabalho, o baixo soldo e as relações que vão se desenvolvendo entre Bartleby, seu chefe e os colegas Turkey, Nippers e Ginger Nut, até o ponto em que o adoecimento do escrivão parece trazer ansiedade e preocupação a todos, que passam a repetir, em dado momento, a frase recorrente do homem meio catatônico que passava horas olhando fixo para uma parede: “prefiro não“. O olhar para as mudanças do grupo é uma consequência, uma extensão da já bastante explorada mudança comportamental e emocional de Bartleby, que “deixa de produzir” e passa a ser um peso para seu chefe, situação que dá início a eventos que levarão, ao cabo, à prisão e inanição do escrivão.
O que Melville mostra e, deliberadamente, omite, acaba criando uma tensão entre tudo o que é real, ordinário e esperado em “uma história de Wall Street” (os detalhes do escritório, as personalidades dos funcionários) e o enigmático (os silêncios sobre o passado de Bartleby, as motivações reais de sua recusa, mesmo depois da narração de um boato). O estilo seco serve perfeitamente ao tom de registro burocrático que o narrador-patrão mantém ao longo da novela, mesmo quando a situação escapa completamente ao seu controle, gosto e compreensão. Se algumas escolhas do autor frustram, numa primeira leitura — como a indicação do trabalho no setor de cartas mortas do Correio; a transição abrupta no comportamento do protagonista e a falta de motivações claras –, é possível que sejam também um reforço aos questionamentos melvellianos, pois o autor parece menos interessado em explicar Bartleby do que em mostrar o efeito de sua presença (e depois ausência) naquele microcosmo de trabalho. A novela oscila entre momentos de precisão cirúrgica e outros que parecem apressados ou incompletos, mas seu núcleo é sólido e ótimo: a história de um homem que, ao recusar-se a continuar funcionando dentro da máquina, mostra a crueldade (quase sempre silenciosa) e a desumanização que o sistema impõe a todos os envolvidos, até que não reste mais nada além de um espaço vazio e mais outros iguaizinhos a ele apareçam.
Bartleby, o Escrivão (Bartleby, the Scrivener) — EUA, 1853
Autor: Herman Melville
Publicação original: Putnam’s Magazine
Publicação com pequenas alterações: The Piazza Tales (1956)
Edição lida para esta crítica: Editora Antofágica (2023)
Tradução: Antônio Xerxenesky
Capa da Antofágica: Giovanna Cianelli
256 páginas (edição da Antofágica)
