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Crítica | Barton Fink – Delírios de Hollywood

por Luiz Santiago
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estrelas 4

Há um termo em alemão para obras literárias que focam o crescimento etário de um protagonista e o desenvolvimento de sua psicologia e caráter, o Bildungsroman, os “romances educacionais”. Deste gênero surgiu um menor, o Künstlerroman, que foca especificamente em artistas, cientistas, inventores ou criadores de alguma coisa ou arte que passam por algum processo de dificuldade ou [auto]análise para chegar à maturidade e encontrar-se a si mesmo em um outro estágio da vida, pensando e agindo de forma diferente. Obras como Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), Jane Eyre (1847), David Copperfield (1850) e Doutor Fausto (1947) se enquadram nessa categoria, um subgênero que, juntamente com essas obras literárias, serviram de migalhas criativas para os Irmãos Coen conceberem Barton Fink – Delírios de Hollywood (1991), um roteiro que surgiu em três semanas enquanto a dupla lutava contra um bloqueio criativo (ou “branda velocidade de escrita” como afirmaram em entrevista) durante a manufatura de Ajuste Final (1990).

Vencedor, por unanimidade, da Palma de Ouro em Cannes, além dos prêmios de melhor diretor e ator, Barton Fink revelou, de uma vez por todas, o caráter surrealista e às vezes dadaísta de Joel Coen e Ethan Coen na direção e roteiro, um componente artístico que ao invés de centrar-se completamente em si, abriu as portas para temas seculares como fascismo, ati-semitismo, guerra, cultura e contracultura, teatro e escolas dramatúrgicas e Broadway versus Hollywood.

Barton Fink não se classifica, portanto, como um filme exclusivamente surrealista porque seus temas não estão totalmente subtendidos ou inscritos em um amontado de símbolos e signos como em clássicos do gênero, tais como Um Cão Andaluz ou A Idade do Ouro. E talvez neste ponto esteja a rusga que impede Barton Fink de ser uma obra-prima. Os diretores definitivamente possuem um tema moral e mensagens bem específicas para desenvolver e mostrar, literal ou figurativamente, mas fazem isso equilibrando o real com o surreal, mistura que segue bem do começo até o meio do filme mas depois perde seu poder de impressionar. Veja, por exemplo, as formas que a montagem utiliza para mostrar o mergulho de Barton neste hotel-inferno que pode ser sua mente ou um local verdadeiro: buracos e corredores para os quais a câmera se aproxima sorrateira, depois de nos mostrar um estupefato protagonista, e em seguida acelera, até que um fade-out encerra mais aquele nível dantesco e nos traz novamente para a realidade, mais sombria e doente.

À medida que vemos o dramaturgo Barton Fink (John Turturro, muitíssimo bem em cena) descer os níveis de um inferno psicológico ao passo que ascende artisticamente, percebemos que os cineastas brincam com movimentos opostos  dentro dos planos, como a subida e descida do elevador em momentos muito particulares; ou colocarem pequenos indícios psicológicos e emocionais espalhados pelas sequências, como o extremo calor descolando o papel de parede dos quartos (falsa aparência que, se posta à prova, não se mantém, uma espécie de prisão que está diretamente ligada ao ótimo personagem de John Goodman); exporem o contraste estético em cor, luz e desenho de produção entre o Hotel e a casa ou sala do executivo Jack Lipnick (uma mistura de Harry Cohn, Louis B. Mayer e Jack Warner, poderosos da indústria do cinema em 1941, ano em que o filme se passa); repetirem a foto da bela mulher na praia, que serve como um escape quase libidinoso para Barton e cuja imagem surge “na vida real” ao final do filme; ou alternarem os mais diversos ruídos e sons que Barton ouve no quarto, especialmente o de mosquitos, clássico símbolo de agressividade que viola a vida íntima de sua vítima e alimenta-de de seu sangue, uma metáfora perfeita para a relação contratual de Barton com o estúdio naquele momento.

A reunião desses muitos fatos e fatores servem como provação constante para a paciência, caráter e emoções dos personagens, tratamento que antecipa o enredo do Livro de Jó em alguns anos na filmografia dos Coen, cenário que filmariam em 2009, no longa Um Homem Sério. Aqui, o real tema bíblico em pauta é o de Nabucodonosor e sua tremenda angústia (ou quase loucura) em não saber a interpretação de um estranho sonho. Em paralelo, vemos o mundo externo à beira de um colapso (o ataque à base de Pearl Harbor acontece na reta final e transforma o executivo em militar). Esta série de catástrofes sociais e particulares dão maior sentido à inspiração dos Coen para criarem o personagem de Barton, o dramaturgo Clifford Odets, do Group Theatre, cujo trabalho era de destaque pleno para os problemas sociais, o tal “homem comum” que tanto Barton deseja retratar através de sua escrita e que se contrasta — embora ele só perceba depois — com a prosa de um escritor que ele admira muito, personagem levemente inspirado em William Faulkner.

Em um mundo ativo em vários níveis (Chet vem do subterrâneo para atender Barton logo no início e toda a trama de produção artística do personagem acontece no andar de número 6, o número das ambivalências, da oposição entre criatura e criador em um equilíbrio indefinido) e onde se vê décors contrastantes e figurinos que não mudam, apenas ganham mais ou menos peças e mais ou menos adereços, o espectador precisa decidir sobre o que vê e sobre a solidez de cada um dos tratamentos dados pelos cineastas. Nem tudo é cifrado e nem tudo é aberto em Barton Fink. O filme ganha muitos pontos porque faz um bom jogo de roteiro com esta faceta do surrealismo pincelado de realidade alterada mais metalinguagem (literária, teatral e cinematográfica), todavia, não alcança o tom máximo em todas elas, o que não o impede de ser uma obra ímpar.

Assumidamente dando sequência a temas expostos por Roman Polanski em filmes de corredores e apartamentos como Repulsa ao Sexo (1965) e O Inquilino (1976) e trazendo para as cenas elementos temáticos e imagéticos de O Poderoso Chefão (1972), Eraserhead (1977) e O Iluminado (1980), os Coen fizeram de Barton Fink – Delírios de Hollywood um poço sem fundo de interpretações e alusões a um cenário tão conhecido mas ao mesmo tempo tão distante de nós.

O curioso, porém, é que à medida que descemos (ou subimos?) os círculos deste inferno criativo sobre o qual o filme fala, percebemos que há muito mais do que delírios e cenas estranhas. Há um autor querendo ser ele mesmo, correndo para não ser destruído com todo o restante em seu entorno. Diante disso, qual é a única forma de sobreviver, se não escrevendo e, através da escrita, controlar a realidade? Barton assume que o processo de escrita para ele é, em parte, dor. Mas entre ser consumido ou sufocado por um mundo sobre o qual ele não tem poder, o escritor prefere sofrer representando o “homem comum” deste mundo (ou ele mesmo?) de forma sistemática e controlada. A coisa toda está no papel ou na ideia, começando com o final de uma peça e terminando com uma contemplação após a escrita de uma magnus opus. Quem está delirando, o autor ou o leitor/espectador? Quem está no filme (ou na foto)? A busca pelo bobo da história é quase um jogo de esconde-esconde e o que cada um vai encontrar no final é o grande mistério que o filme nos reserva, o questionamento da validade da arte e da vida.

Barton Fink – Delírios de Hollywood (Barton Fink) — EUA, Reino Unido, 1991
Direção: Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Joel Coen, Ethan Coen
Elenco: John Turturro, John Goodman, Judy Davis, Michael Lerner, John Mahoney, Tony Shalhoub, Jon Polito, Steve Buscemi, David Warrilow, Richard Portnow, Christopher Murney
Duração: 118 min.

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