Home LiteraturaCrítica | Battle Royale, de Koushun Takami

Crítica | Battle Royale, de Koushun Takami

Mil e uma maneiras de matar seu amiguinho.

por Ritter Fan
0 views

A premissa macro de Battle Royale de “jogo de sobrevivência” não foi criada por seu autor Koushun Takami. Olhando para trás, é possível detectar com facilidade diversas outras obras que seguem por esse caminho. No entanto, até onde me consta, quando entramos em algumas granularidades, algo como “jogo de sobrevivência coordenado por um estado totalitário em que jovens têm que matar uns aos outros até que apenas um sobreviva”, Takami merece o mérito de ter criado quase que um subgênero ou, no mínimo, uma tendência narrativa que foi efusivamente abraçada ao longo das décadas seguintes nas mais variadas obras literárias e audiovisuais, inclusive – e talvez mais famosamente – na série Jogos Vorazes, de Suzanne Collins. Não que eu considere a obra de Collins plágio da de Takami, mas é inegável a forte influência que Battle Royale teve sobre Jogos Vorazes, a autora americana reconhecendo ou não isso.

No entanto, independente disso, se Takami foi ou não o criador dessa sub-subcategoria literária, é difícil ignorar Battle Royale, até hoje o único livro de sua autoria, como um alicerce fundamental dela, o que foi amplificado pelo mangá que o próprio Takami escreveu entre 2000 e 2005, os dois spin-offs posteriores por outros autores e, claro, o longa-metragem de 2000 dirigido pelo lendário Kinji Fukasaku e sua continuação de 2003 pelo mesmo cineasta ao lado de seu filho. A questão maior, porém, é olhar para Battle Royale para além de sua superfície de forma a descobrir se a obra de Takami tem mais camadas do que promete sua sinopse ou se tudo o que ela oferece é mesmo o “mata mata” de adolescentes de forma que só reste um ao final. A resposta para isso, claro, dependerá de cada pessoa e do quanto o livro conversa com ela, mas é importante ter em mente que o livro precisa ser analisado de maneira autocontida, sem elementos estranhos a ele, mesmo que escritos pelo próprio autor em seu mangá.

Em termos de estrutura, o livro é inteligentíssimo, pois Takami faz uma literal contagem de corpos, com cada um de seus relativamente curtos capítulos sendo encerrado com a indicação do número de estudantes – de 42 no total – que ainda restam vivos. Nem todos os capítulos trazem mortes, mas todas as mortes são abordadas de alguma forma, mais cedo ou mais tarde, e elas são extremamente variadas em razão das diferentes armas – de garfos a metralhadoras, passando por colete à prova de bala que nem exatamente é uma arma – que estão contidas nas sacolas que cada um dos participantes da Escola de Ensino Fundamental Shiroiwa recebe quando sai da instalação inicial para começar a perambular pela ilha deserta dividida em quadrantes que, conforme anúncios periódicos, vão se tornando “áreas proibidas” cujo ingresso leva à morte instantânea por meio da detonação de um colar explosivo que cada um tem no pescoço. Apesar do tamanho do livro, com mais de 650 páginas, seu autor escreve algo quase que cientificamente formulado para criar compulsão no leitor de virar “mais uma página” ou “ler só mais um capítulo”.

Também muito espertamente, Takami sabe que não pode perder-se na abordagem detalhada de todos os 42 alunos e mais os personagens relevantes para a história, como o professor Kinpatsu Sakamochi que é o mestre de cerimônias e representante do governo fascista de um Japão distópico pouco explicado que se denomina República da Grande Ásia Oriental. Com isso, em mente, o que o autor faz é criar dois pequenos núcleos de personagens que serão brindados com um pouco mais de desenvolvimento para criar dúvida sobre quem “ganhará” o jogo e dois personagens soltos que são os grandes alunos vilões, um menino e uma menina, com apenas a menina recebendo um pano de fundo que lhe dá algum contexto. Todos os demais personagens – com poucas exceções – ou são introduzidos na hora de suas respectivas mortes ou se tornam pontes narrativas que fazem uma espécie de comunicação entre grupos. Com isso, há, ostensivamente, o grupo do roqueiro Shuya Nanahara e o grupo do polivalente Shinji Mimura com estratégias próprias, mas separadas, tendo que enfrentar o frio e calculista Kazuo Kiriyama e a traiçoeira e bela “dama em perigo” Mitsuko Souma que atuam como exterminadores de alunos bocós, cada um de seu jeito e sempre solitários. Não que Kazuo e Mitsuko sejam os únicos alunos perigosos, pois não são, assim como os membros dos grupos de Shuya e Shinji não são os únicos bonzinhos, mas, em termos funcionais, essas são suas bem claras funções.

Quando, porém, passamos da “fase de deslumbramento” pela engenhosidade de Takami em criar uma narrativa difícil de largar e descemos mais uma camada em busca de desenvolvimento efetivo de personagens, contexto para o “Programa” a que os alunos de diferentes escolas são submetidos anualmente e, também, um plano lógico e bem estruturado que leve ao final proposto por Takami, o livro oferece pouco, bem pouco. Quase nada, diria. Shuya e Shinji são heróis estereotípicos e Kazuo e Mitsuko são vilões estereotípicos, com a primeira dupla, muito sinceramente, sendo completamente sem sal e repetitiva na forma como seus valores são expostos e quando eles, mesmo quando precisam suplantá-los, não exatamente crescem com isso; e a segunda dupla só se destacando mesmo pela quase hilária eficiência deles em trucidar seus coleguinhas, com Kazuo sendo uma versão mais jovem e menos metálica do Exterminador do Futuro, tamanha é sua capacidade de permanecer vivo e praticamente sem nenhum arranhão nas mais improváveis situações. O pano de fundo da distopia que nos é apresentada é rasa como o proverbial pires e o plano final ou, talvez melhor dizendo, os dois planos finais, são quase que mágicos, daqueles que se prostram no chão e imploram ao leitor para aceitá-los sem pensar muito.

E o que sobra, quando as camadas são fuçadas e reviradas em busca de algo a mais, é a originalidade, a variedade, a violência e o sadismo das dezenas de mortes que são detalhadamente abordadas para deleite de quem acha que só isso é suficiente (e não há problema algum nisso, vale frisar, mas não é suficiente para mim). É divertido daquele jeito primal da coisa? Sem dúvida. Mas é leitura de banheiro, como eu pejorativamente costumo classificar, não que eu vá levar um tijolo desses para lá, obviamente. Sendo mais simpático para ninguém se sentir ofendido, Battle Royale é leitura para um domingo chuvoso ou alguns domingos chuvosos, como intervalo entre obras de maior valor, inclusive as de Collins se eu quiser ser polêmico. Takami criou algo em tese excelente, que conversa bem com a versão que ninguém gosta de encarar de frente da natureza humana, mas, para além do conceito em si, de um ou dois momentos memoráveis como é o capítulo sobre o grupo de meninas no farol da ilha, e de suas inteligentes e eficazes estratégias para fisgar o leitor, o romance é um amontoado de páginas em contagem regressiva de corpos que se refestela somente nesse processo, sem se dedicar ao que deveria ser o mais importante.

arte: Kaisia Menzies

Battle Royale (バトル・ロワイアル / Batoru Rowaiaru – Japão, 1999)
Autoria: Koushun Takami
Editora original: Ohta Publishing
Data original de publicação: abril de 1999
Editora no Brasil: Editora Alt
Data de publicação no Brasil: 1º de março de 2014
Tradução: Jefferson José Teixeira
Páginas: 664

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais