A Poesia Concreta, movimento que emergiu nas décadas de 1950 e 1960 no Brasil, trouxe uma nova fórmula artística ao transformar a palavra em um elemento visual e sonoro, rompendo com as tradições literárias anteriores. Entre os poetas mais proeminentes desse movimento, Décio Pignatari se destacou não apenas pela inovação formal, mas também pela profundidade de suas críticas sociais e ironias presentes em sua obra. O poema Beba Coca-Cola, que se apresenta como uma resposta ao crescimento do consumismo exacerbado, destaca-se como um exemplo emblemático dessa crítica. Ao utilizar o slogan de uma famosa marca, Pignatari convoca os leitores a refletirem sobre o domínio da cultura de massa e suas implicações na formação do pensamento social brasileiro. O autor, ao transformar o ato de beber um refrigerante em um convite à reflexão crítica, mostra como a linguagem pode ser um instrumento poderoso para desconstruir a lógica do consumismo.
O contexto histórico em que Pignatari escreveu Beba Coca-Cola é fundamental para a compreensão do poema. O Brasil, nos anos 1960, vivia um período de crescente urbanização e de influência da cultura americana, marcado por um consumismo desenfreado. A frase imperativa que acompanha o título do poema não apenas sugere uma ação, mas, principalmente, um convite à reflexão sobre a ordem imposta por demandas sociais e econômicas que nos circundam. A leitura do poema provoca um desconforto, não só pelo conteúdo crítico, mas também pela sua forma inovadora. A disposição das palavras, que capturam a essência do slogan, cria um convite à exploração diversificada de sentidos, seja por uma leitura linear, vertical ou mesmo diagonal. Essa multiplicidade de interpretações é uma característica central da poesia concreta, permitindo que os leitores se engajem ativamente na construção do sentido, e que a experiência literária se torne híbrida e multifacetada.
A obra de Pignatari revela-se, portanto, mais do que uma experimentação estética; é um manifesto que desafia a alienação do indivíduo numa sociedade movida pelo consumismo e pela superficialidade. O jogo de palavras artificializa, ao mesmo tempo em que critica, a escravidão da consciência ao materialismo, muitas vezes veiculado por marcas que se tornam ícones de uma cultura hegemônica. Ao fazer isso, Pignatari não apenas denuncia a desvalorização do que é nacional, mas também a forma como as ideologias são impregnadas na linguagem cotidiana. Isso nos leva a refletir sobre como essas palavras e seus diversos arranjos nos levam a uma compreensão mais profunda da realidade social brasileira, onde a crítica está embutida em cada letreiro, em cada jingle publicitário e em cada expressão de consumo.
Por fim, a importância do poema Beba Coca-Cola, de Décio Pignatari, transcende suas qualidades estéticas. Ele se insere numa discussão mais ampla sobre a formação do pensamento crítico-social no Brasil. Através da experimentação linguística, Pignatari nos leva a investigar a ideologia subjacente não apenas na publicidade, mas no cotidiano da vida urbana. O ato de ler o poema não se limita a considerar as palavras isoladamente; é uma jornada pela intersecção entre linguagem, poder e subjetividade. A interpretação da obra, portanto, abre espaço para questionamentos sobre nossa posição enquanto sujeitos numa sociedade marcada pelo consumismo. Ao nos depararmos com um texto poético que desafia a linearidade, somos convidados a repensar a nossa relação com a linguagem, o consumo e, em última análise, conosco mesmos enquanto indivíduos críticos e conscientes no mundo contemporâneo. A obra de Pignatari é um testemunho de como a poesia pode, e deve, estar alinhada a uma reflexão profunda sobre as realidades sociais que nos cercam, mostrando que palavras, de fato, têm poder e significado.
Sobre o seu contexto e estilo, a Poesia Concreta emergiu no Brasil na década de 1950, destacando-se a partir da “Exposição Nacional de Arte Concreta”, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956. Este movimento vanguardista encontrou seu berço nas intersecções entre a literatura, as artes visuais e a música, revelando uma nova perspectiva sobre a linguagem e seu funcionamento. Fundado por Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, o grupo, conhecido como Noigandres, buscou quebrar as amarras da poesia tradicional, propondo um diálogo intenso entre o verbal e o visual. O Manifesto da Poesia Concreta, publicado em 1956, marca o advento dessa nova linguagem, oferecendo uma estrutura poética inovadora que prioriza não apenas a sonoridade das palavras, mas também o jogo visual que elas podem proporcionar.
A proposta concreta era clara: a supressão do verso e da estrofe, a eliminação do eu lírico e a rejeição da poesia intimista, buscando um racionalismo que se manifestava por meio de uma nova organização estética. Em 1958, o “Plano Piloto da Poesia Concreta” surgiria, solidificando os princípios já enunciados no manifestado anterior e expandindo a discussão sobre as possibilidades expressionais da poesia. Essa nova abordagem destacava a importância do experimentalismo poético, promovendo uma interação entre palavras, formas e sons. O poeta tornou-se, assim, um criador que ocupava o espaço em branco da página, transformando-o em um campo de experimentação visual e sensorial, onde a palavra não era apenas um meio de comunicação, mas sim um objeto artístico em si.
As características da Poesia Concreta são notórias e abrangem elementos que vão além da simples disposição gráfica das palavras. A presença de efeitos gráficos e sonoros, a inclusão de aspectos geométricos e a exploração de uma poesia visual são algumas das marcas deixadas por este movimento que se consolidou, não só na literatura, mas também pelas suas manifestações nas artes plásticas e na música. Os concretistas revelaram que o significante (a forma de apresentação) poderia se descolar do significante (o conteúdo), permitindo novas leituras e interpretações. Essa dissociação fez com que o leitor não apenas lesse, mas experimentasse a poesia em uma dimensão multidimensional, onde a visão e a audição estabeleciam uma relação única, e o entendimento se desdobrava em uma experiência estética.
Ao longo dos anos, a Poesia Concreta continuou a influenciar não apenas os poetas de sua época, mas também sentimentos e expressões artísticas contemporâneas, chegando a autores e músicos como Arnaldo Antunes. Esta hibridação entre a poesia e outros campos artísticos permanece relevante, demonstrando a vitalidade de suas ideias e a maneira como a linguagem pode ser expandida. O caráter não-formal da Poesia Concreta permite que novas gerações questionem e desafiem as normas estabelecidas. Ao explorar a relação intrínseca entre palavras, formas e sons, a Poesia Concreta se firmou como uma das mais importantes expressões do modernismo brasileiro, contribuindo significativamente para o debate sobre a estética e a linguística, e reafirmando a importância da experimentação no campo das artes e da literatura. A relevância desse movimento se faz sentir também no cenário atual, onde a poesia permanece um campo fértil para inovação e diálogo com diferentes mídias e formas artísticas.
Beba Coca-Cola (Brasil, 1957)
Autor: Décio Pignatari
Editora: Ateliê Editorial
Páginas: 1