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Crítica | Bela Vingança

por Ritter Fan
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  • spoilers. Se você não viu o filme, faça um favor a você mesmo – especialmente se você for do sexo masculino – e veja antes de ler qualquer coisa.

Can you guess what every woman’s worst nightmare is?

Bela Vingança (era uma vez o sarcasmo do título original…) tem como objetivo maior escancarar um problema sério incomodando os causadores do problema – os homens -, e todos aqueles que, por ação ou omissão, tornam possível que ele ocorra de forma corriqueira, costurado profundamente no cotidiano da sociedade. Há, portanto, um componente claramente didático no longa de estreia na direção e roteiro da atriz Emerald Fennell (a Camilla Parker Bowles, de The Crown) que, porém, ela consegue lidar sem tornar sua obra enfadonha por um segundo sequer e até mesmo transformando o que seria mera exposição em elemento embebido na infraestrutura narrativa.

A cineasta estreante, para começo de conversa, tem a coragem de abordar o estupro (não vou ficar aqui usando eufemismos para agradar gente do meu sexo) com uma linguagem visual indireta, primeiro emulando slasher dos anos 80, depois comédia adolescente dos anos 90 e por todo tempo mantendo uma atmosfera de videoclipe e um apuro visual que cria um ar atemporal – ou multi-temporal – ao seu trabalho, como quando mantém o lar de sua protagonista ou, melhor dizendo, de seus pais, completamente no passado com uma fenomenalmente brega decoração kitsch ou quando lida com seus figurinos de forma a não entregar modas de épocas específicas. Há, em cada fotograma de Bela Vingança um evidente cuidado visual que parece funcionar como isca para fisgar desavisados que, quando perceberem, já estarão enredados pela trama e não mais quererão sair dela ou, bem ao contrário, desistirão do longa justamente por ele ser incômodo e desconcertante.

Carey Mulligan vive Cassandra “Cassie” Thomas, mulher que, em razão de trauma passado, largou a faculdade de medicina e começou a trabalhar em uma cafeteria, visitando bares e boates nos finais de semana fingindo-se bêbada para atrair homens que se aproveitam desse estado em mulheres para estuprá-las. Sua vingança, apesar do delicioso início que dá a entender que ela os mata ou mutila de alguma forma, é muito simples, não mais do que a revelação, momentos antes de o ato ser perpetrado, de que ela está bem sóbria na verdade, o que imediatamente afasta o homem, desnudando toda sua covardia, toda sua sordidez e funcionando como um verdadeiro espelho da alma.

Essa sua vida consideravelmente sem prazer pessoal é mudada quando ela, sem querer, se reconecta com Ryan Cooper, colega de faculdade vivido por Bo Burnham que, por seu turno, reacende seu desejo de vingança contra o maior responsável pelo estupro coletivo e posterior suicídio de sua melhor amiga Nina e todos aqueles diretamente ao redor. Com isso, ela parte para executar um elaborado plano – com direito a divisão em capítulos como em Kill Bill: Vol. 1 – que cria excelentes situações com cada um dos que ela considera culpados em sequências que, como disse, em princípio parecem escolher o caminho do didatismo, mas que estão tão bem inseridas na dinâmica do longa que tudo caminha de maneira muito fluida e até… agradável… se é que esse adjetivo pode ser utilizado aqui. Confesso que, quando a velocidade aumenta e as coisas passam a encaixar-se demasiadamente bem, o longa perde um pouco de seu ritmo, mas nunca sua relevância.

Mulligan foi a escalação perfeita para o papel, já que, para além dos visuais e do estilo quase pop de Fennell, é ela que carrega a obra nas costas, com uma atuação variada que nos convence primeiro de que ela está mesmo bêbada no início, depois como um anjo vingador, passando por uma mulher em tudo apaixonada por Cooper até que seu namorado é também revelado como partícipe do estupro da amiga, algo que propositalmente quer dizer que sim, todo homem é estuprador. Mas calma, calma, essa afirmação não deve ser interpretada como absoluta, mas sim, apenas, uma generalização necessária para sacudir o espectador, aquele que, como eu, assiste o filme no alto de seu pedestal dizendo o quanto é absurdo isso acontecer, mas sem realmente entender a magnitude da coisa.

Mas, retornando à Mulligan, além de sua atuação realmente impressionante, sua aparência de “mulher normal” – e, não se enganem, ela é linda, mas não é uma supermodelo, especialmente não da forma como ela é espertamente caracterizada no longa – ajuda muito na colocação de que esse tipo de situação não está restrita às mulheres que, dizem os homens, “convidam estupradores” (ah, como é terrível escrever isso mesmo que seja para dizer como é errado) pela forma como agem, como se vestem e assim por diante. Com isso, Fennell é muito feliz em pegar o que deveria ser uma exceção, daquelas realmente excepcionais, e normalizá-la, ou seja, em demonstrar – quase cientificamente – que essa é a vida das mulheres em geral, assediadas com assovios quando andam na rua e drogadas por malucos que querem sexo doentio.

E o final? A espetacular vitória de Cassie, finalmente vingando sua amiga da maneira mais apoteótica possível, parece, por alguns segundos, um encerramento feliz para o longa. Mas a que preço ele veio? Para conseguir chegar a esse ponto, Cassie teve que se sacrificar, teve que morrer sufocada em sua tentativa de marcar o nome da amiga no corpo de seu estuprador. E, pior, paremos um pouco para pensar sobre o ocorrido, lembrando da conversa com o advogado arrependido vivido muito bem por Alfred Molina em que ele diz que fez acordos da natureza com o que forçou Nina a aceitar como dezenas, senão centenas de outras mulheres. Será que o sacrifício de Cassie e a prisão do estuprador (e, na melhor das hipóteses, a desgraça dos demais envolvidos) mudou alguma coisa? Será que Fennell quis dizer que tudo seria resolvido assim tão facilmente? As perguntas são retóricas, claro, pois suas respostas, infelizmente, são evidentes e dolorosas.

Bela Vingança é um belo de um tapa na cara, uma violenta joelhada nos colhões, uma bela lição audiovisual sobre o terrível estado da sociedade machista em que vivemos. Emerald Fennell é uma incrível professora que leciona com um sorriso no rosto, com palavras muito bem colocadas e uma baita apresentação interativa por trás mesmo quando fala de coisas terríveis como o estupro. Resta saber se o esforço da cineasta fará pelo menos uma pessoa olhar para o próprio umbigo em processo de auto avaliação e avaliação de seus pares imediatamente ao redor ou se tudo terá sido em vão como a vitória de Pirro de Cassie.

Bela Vingança (Promising Young Woman – EUA/Reino Unido, 2020)
Direção: Emerald Fennell
Roteiro: Emerald Fennell
Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Alison Brie, Clancy Brown, Jennifer Coolidge, Laverne Cox, Chris Lowell, Connie Britton, Adam Brody, Max Greenfield, Christopher Mintz-Plasse, Sam Richardson, Alfred Molina, Molly Shannon, Steve Monroe, Angela Zhou, Francisca Estevez, Austin Talynn Carpenter, Emerald Fennell
Duração: 113 min.

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