Home QuadrinhosMangá Crítica | Berserk – Saga 01: O Espadachim Negro

Crítica | Berserk – Saga 01: O Espadachim Negro

por Giba Hoffmann
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Arco: Espadachim Negro
Capítulos: 0A: O Espadachim Negro; 0B: O Estigma

Obra máxima do mangaka Kentaro Miura, Berserk está prestes a completar seus 30 anos de publicação (2020). Marco de popularidade e sucesso de recepção tanto do subgênero de fantasia quanto da demografia seinen, a ainda inacabada saga de Guts permanece forte mesmo minada pela periodicidade irregular de sua publicação (hiatos, intermináveis hiatos!). Prova disso é que nos últimos anos tivemos uma nova adaptação em anime pelo estúdio Liden Films (ainda que realizada com computação gráfica que dificilmente faz jus aos visuais do mangá original) e um ótimo game no irrefreável estilo Musou, pela Omega Force.

Parte do segredo do sucesso da série pode ser encontrado já em seus dois primeiros capítulos (“episódios”, na nomenclatura específica da obra), os introdutórios O Espadachim Negro O Estigma. Embora não se trate de uma introdução rigorosamente perfeita, o início da saga é forte o suficiente para não apenas apresentar ao leitor o mundo e os temas específicos de Berserk mas, mais importante que isso, fisgar seu interesse e curiosidade a respeito tanto do background quanto dos rumos que a história de Guts haverá de tomar, intencionalmente deixados em aberto até este ponto.

Nosso personagem principal já se apresenta, desde o início, como uma releitura bastante interessante do arquétipo do bárbaro. A cena de abertura de O Espadachim Negro é inclusive paralela a uma de Conan, o Bárbaro (1982)onde o brucutu transa com uma mulher que gradativamente se transfigura em uma forma monstruosa. Ao contrário da reação de Conan frente à bruxa, a forma como os visuais nos mostram Guts já se entregando à relação, mesmo em meio à toda monstruosidade demoníaca de sua parceira, para então executá-la sob um olhar cruelmente triunfante já nos dá a dica. Guts não é Conan. Embora eles tenham em comum o estilo de vida estóico, brutal e individualista do bárbaro, há algo do demoníaco que mancha a própria liberdade de Guts, que dá tons mais trágicos e autoconscientes a toda a brutalidade em que ele se vê envolvido do que o que as aventuras de espada e sandálias deste tipo de setting normalmente está disposta a pintar. Se o bárbaro normalmente é um tipo de libertino, Guts no entanto não parece gozar de nenhum grau de liberdade.

Se momentos como essa cena inicial certamente fizeram a alegria dos adolescentes que, nos anos 1990, buscavam por histórias de ação mais (literalmente) viscerais do que o (fantástico) show de fogos e explosões e o (maravilhoso) kung-fu transdimensional de Dragon Ball, engana-se o leitor iniciante que pensar se tratar apenas de uma escolha por estilo. A narrativa aqui funciona bem justamente ao contrabalancear o peso dos temas e da ultraviolência gráfica com a leveza do desenvolvimento de enredo direto, sem exageros e extremamente fluído. Trata-se de uma história do tipo slow burn, que toma o seu tempo para se desenhar e colhe os frutos disso nos momentos-chave em que o leitor vai se dando conta de como os elementos e as passagens anteriores se encaixam.

O desenho de Miura aqui nesta fase inicial faz um uso magistral do nanquim e retículas para nos inserir, sem rodeios, em meio à dark fantasy do mundo de Guts. Tanto na apresentação dos cenários e da vida cotidiana da cidade, quanto nos momentos de ação que usam bem das splash pages para emprestar o peso devido ao encontro do metal com o metal (e, é claro, do metal com a carne), trata-se do tipo de rendição visual que pouco exige da imaginação do leitor, no sentido em que tanto os movimentos dos personagens quanto os sons das onomatopeias se destacam com facilidade da estática das páginas, no icônico realismo hiperbólico do artista.

Nessa primeira aparição, vemos o guerreiro misterioso Guts, que se autodenomina “o espadachim negro”, buscando vingança contra o terrível Barão Serpente, senhor de guerra que ocupa o castelo e tiraniza a cidade de Koka, dando livre passagem e poder aos bandidos que o seguem. Acompanhando o ponto de vista de Guts, o vemos provocar bandidos em uma taverna apenas para iniciar um combate que termina no massacre violento de alguns desses subordinados do Barão. Se de início nos parece que o espadachim negro atuou no sentido de salvar o pequeno elfo Puck da tortura que sofria na mão dos caras, ou ainda para investigar o tráfico de crianças que ele presenciou na chegada da cidade, logo percebemos que a intenção de Guts é antes de tudo dar um recado para o Barão a respeito de sua chegada.

O pequeno elfo/fada Puck acaba assim servindo como artifício narrativo bem interessante neste conto inicial. Além de trazer uma dose de alívio cômico, que em contraste realça o perigo iminente e a violência à espreita a cada momento, Puck ainda serve a dois outros propósitos. Um deles, mais metatextual, é justamente servir como alegoria para a construção da tonalidade deste mundo que é aqui introduzido. A indiferença de Guts e a ridicularização geral da criatura acenam ao leitor que não se trata aqui da fantasia medieval tradicional – menos em termos de tonalidade do que na própria narrativa. O desprezo ao elfo não parece satirizar os aspectos mágicos ou os conceitos abstratos da alta fantasia tradicional (dos quais a obra acabará emprestando, como dá pistas já este primeiro volume), mas sim a narrativa otimista e cheia de sentidos que costuma revestir esse tipo de aventura.

Guts não está interessado em ser um herói mas apenas em perpetrar sua violenta vingança – nem que isso possa acarretar na destruição total de toda a cidade. Ele alega que a morte do inocente não o atinge, uma vez que, à maneira de uma leitura possível e radical de Nietzsche, a suposta inocência da vítima tenta apenas disfarçar e revestir de valor sua real fraqueza, que é sem valor e assim não tem lugar no mundo. Na mesma medida, a vilania do Barão Serpente demonstra antes de tudo uma total indiferença aos efeitos de seus atos terríveis, que são apresentados pelos visuais e diálogo de forma fria e corriqueira. Essa banalização do mal serve tanto para embasar o ritmo de ação desenfreado e a ultraviolência das ótimas cenas de ação da história quanto para ressoar tematicamente com o personagem de Guts e seu olhar sobre o mundo, que é o olhar de um ser literalmente amaldiçoado.

Esse tema, que será aprofundado nas histórias posteriores, já nasce bem forte em O Espadachim Negro, com destaque em dois momentos. Na cena em que Guts está preso enquanto Puck vem ao seu resgate, vemos nosso protagonista em um momento frágil que contrasta totalmente com o ar de invencibilidade que sustentava até então. É aí que ele explana em alto e bom som exemplos de sua dura filosofia de vida amoral, como forma de se defender da acusação de estar colocando em risco a vida de todos na cidade por conta de sua vingança pessoal. É aqui que entra o outro propósito de Puck, que através de sua tentativa em dialogar com alguma sensatez com Guts e de sua empatia aguçada de elfo informa ao leitor que, afinal de contas, por detrás do aparente estoicismo e da ira irracional banalizada existe uma pessoa torturada. O tema é apenas pontuado, em favor de acompanharmos mais uma boa sequência de luta contra o Barão Serpente e seus subordinados, onde descobrimos que Guts procura se vingar daqueles a quem o Barão segue, os God Hand.

O capítulo seguinte, O Estigma, troca o foco para o âmbito mais pessoal dos demônios interiores de Guts. Aqui, Miura consegue acertar um belo sucker punch no leitor desavisado, iniciando o que parece ser um episódio de esfriamento após a violenta estreia, nos amolecendo um pouco o coração em relação à figura de Guts com boas trocas comédicas apenas para reverter o delicado estudo de personagem em uma nova tragédia. Após aceitar,a contragosto, a ajuda de um padre e de sua filha, temos um raro lampejo de tranquilidade para nosso perturbado protagonista, em meio ao qual o enfoque dos quadrinhos nos mostra uma outra forma, mais delicada e contemplativa, do bárbaro perceber as coisas. Mediante o cuidado e preocupação genuínos oferecidos pelo padre, mesmo mediante sua reação agressiva típica, temos um primeiro vislumbre explícito de um outro lado de Guts que não apenas o brucutu completamente insensível a toda e qualquer coisa.

O ataque do incubo nos coloca novamente no âmbito dos perturbadores pesadelos de Guts, muito bem registrados na breve paisagem surrealista de seu sonho antes de borrar a linha entre seus demônios internos e os demônios externos que o perseguem, de fato, por conta do Estigma. Continuamos sem saber exatamente a natureza da marca, mas aqui nos fica claro o peso que ela tem para nosso herói, sendo especialmente dramática a forma como ele se vê aceitado a conceder a vitória ao seu inescapável destino maldito, ao final da tragédia que se abate. Recitando novamente sua filosofia pessoal da sobrevivência do mais forte, nos fica claro o quanto passado e futuro se fecham em torno de Guts, enquanto que o leitor, novamente tomando o ponto de vista de Puck, constata: “Esse é o mundo de Guts.”.

Balanceando muito bem a construção de mundo e de personagens em contos que são tão pesados visualmente quanto leves narrativamente, os dois capítulos introdutórios de Berserk são a definição de um page turner para os interessados pela proposta. Ainda que neste primeiro momento permaneça em suspenso o real encaminhamento da coisa toda, o visual detalhado e dinâmico do traçado de Miura coloca sua visão de uma dark fantasy ultraviolenta a serviço de uma narrativa que intriga e cativa o leitor desde suas primeiras páginas.

Berserk – O Espadachim Negro / O Estigma – Japão, 1990
Roteiro: Kentaro Miura
Arte: Kentaro Miura
Editora (no Brasil): Panini
Editora (no Japão): Hakusensha

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