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Crítica | Big Little Lies – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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estrelas 4,5

Em um propositalmente confuso e frenético primeiro episódio, somos apresentados à premissa da série, que nada mais é do que um artifício para imediatamente prender a atenção do espectador. Por meio de cortes rápidos, imagens desfocadas e sons com eco, além de breves trechos de depoimentos em uma delegacia, aprendemos que alguém morreu em uma festa. Não sabemos quem e nem em que circunstâncias e a série, então, adaptada por David E. Kelley (Ally McBeal, Boston Legal) a partir de romance de Liane Moriarty, faz o que as melhores séries fazem: usam o artifício, que funciona em um primeiro momento, mas dificilmente seguraria a atenção, como trampolim para mergulhar na vida doméstica de três mulheres (cinco se quisermos ser abrangentes), com suas respectivas famílias.

Madeline Martha Mackenzie, vivida por Reese Witherspoon, é a esposa em seu segundo casamento que elegeu ser apenas “do lar”, fazendo trabalho comunitário no teatro local e se especializando em se meter na vida de todo mundo. Celeste Wright, vivida por Nicole Kidman, é uma ex-advogada que foi obrigada a deixar sua profissão por Perry (Alexander Skarsgård), seu marido mais jovem e controlador. Jane, vivida por Shailene Woodley, é a recém-chegada na cidade de Monterey, na Califórnia, onde tudo se passa. Mãe solteira e a mais modesta do grupo, ela logo é “adotada” por Madeline e passa a fazer parte do círculo de mães com filhos na cobiçada escola primária pública Otter Bay. Há, ainda, para completar o quadro, Renata Klein (Laura Dern) como a mais milionária do grupo e com uma profissão – diretora de empresa – que exige que ela seja durona sempre, verniz que ela jamais tira mesmo em ambiente social, além de Bonnie Carlson (Zoë Kravitz), segunda esposa de Nathan (James Tupper), ex-marido de Madeline, que tem uma visão mais alternativa da vida.

A morte, portanto, é, de certa forma, apenas uma desculpa para investigarmos a vida dessas personagens, todas mulheres lindas e perfeitas vivendo vidas de sonho em casas deslumbrantes em um cenário paradisíaco. A única exceção é mesmo Jane, que já carrega consigo um passado sombrio e que demora a realmente se abrir e cuja presença na série funciona muito bem quase como uma forma de o espectador poder mais facilmente se identificar naquele ambiente. Mas, claro, aos poucos vamos descobrindo que não é só Jane que tem problemas em seu passado e que a vida de cada uma dessas mulheres é eivada de seríssimas questões que vão sendo descortinadas a partir de um evento de bullying supostamente de Ziggy (Iain Armitage), filho de Jane, em Amabella (Ivy George), filha de Renata, o que estabelece o conflito e os respectivos lados e catalisa esse olhar mais detido e cuidadoso para dentro principalmente dos lares de Madeline e Celeste.

Falando em lares, vale desde logo um parênteses para abordar o magnífico design de produção nesse aspecto. Cada moradia reflete a personalidade da mulher que lá vive ou os sintomas dos problemas que lá existem. Renata tem uma mansão belíssima, mas fria e envidraçada que só vemos a partir de um átrio com pé direito descomunal e uma escadaria em caracol. Ela é ao mesmo tempo distante e transparente, que mantém as demais sempre arredias e em certo grau amedrontadas por sua força desmedida, refletida na opulência de onde mora. No caso de Madeline, o ponto focal é a cozinha onde sua família senta em uma mesa central para fazer as refeições em uma harmonia que nunca, em momento algum, realmente existe e por diversas razões diferentes. Ela é a dona de casa por escolha que não consegue ser aquilo que se propôs a ser. Celeste tem uma residência onde as ondas quebram com força (não farei a correlação aqui para não dar spoilers, mas quem viu, entenderá) e que é predominantemente tomada por cores mais fortes, representando a vida sexual externamente perfeita que ela tem com seu marido. Finalmente, o casebre de quarto e sala de Jane é o reflexo material do que ela sente: uma profunda opressão não só pelo seu passado – do qual foge – e pelo ambiente ao seu redor. Poucas séries têm o cuidado visto aqui em transformar o ambiente na própria pessoa e é fascinante o trabalho detalhado que Kelley tem na série, preocupando-se com pormenores aparentemente insignificantes – reparem o banheiro devassado de Celeste, quase que como um convite à sensualidade e ao sexo – que, em seu conjunto, funcionam como efetivos personagens e instrumentos narrativos.

Mas, voltando à temática da série, os roteiros lidam, em apenas sete episódios, com uma riqueza de situações que hoje são discutidas aberta e contundentemente por aí e que tocam especialmente as mulheres, por serem as vítimas. Existe uma vestimenta de elegância em Big Little Lies que é usada a favor das revelações que são a conta gotas, mas sempre presentes e relevantes. Há violência doméstica, violência verbal, estupro, o já citado bullying e traição, sempre funcionando como denúncia e elemento integrante da narrativa. E isso é muito interessante, pois são essas as questões de fundo na série e não a morte misteriosa. Ela, na verdade, pode ser vista como externa aos acontecimentos realmente principais, ainda que o último episódio faça excelente esforço para unir as pontas soltas e entregar um momento catártico muito bem construído e lógico dentro da estrutura da série e que, aí sim, aborda, comenta e critica os itens que listei logo acima.

A catarse vem também aos poucos através da música que, aqui, é fundamental e quase que integralmente diegética, vazando de fones de ouvido para caixas de som e automóveis e sempre comentando a sequência em que é tocada. Nada é desperdiçado. Muito ao contrário, o elemento sonoro é amplificado tremendamente, até porque, interessantemente, o clímax se dá justamente em um evento beneficente em que os protagonistas têm que se vestir de Elvis Presley ou Audrey Hepburn (e seria perfeitamente possível fazer a mesma análise que fiz das casas em relação aos figurinos escolhidos por cada um) e fazer uma apresentação.

Jean-Marc Vallée, que acabou dirigindo todos os episódios (inicialmente ele estava contratado para apenas os três primeiros), é a cola que dá sentido às várias pontas narrativas. Seu uso de câmeras na mão para dar às vezes um ar documental fundidas com suas tomadas em planos gerais internos e externos, sem deixar de trabalhar planos americanos e perigosos close-ups, resulta em uma minissérie uniforme e que só confunde o espectador quando esse é o efeito desejado. A narrativa não-linear, com o grosso da ação se passando em flashbacks que têm seus flashbacks e que se confundem com a ação do presente – bem caracterizada pelos depoimentos na delegacia pós morte misteriosa – consegue dar vida ao roteiro de Kelley e criar, já nos dois primeiros episódios, um universo coeso, crível e identificável.

Mas muito de seu trabalho deveu-se, também, à dedicação das atrizes que são a alma dessa empreitada. Pessoalmente (e sem nenhuma explicação palpável), simplesmente abomino Reese Witherspoon, mas tenho que dar o braço a torcer aqui por seu trabalho em partes iguais irritante e encantador, como a “patricinha de Monterey” que reúne as linhas narrativas e ainda lida com seus próprios problemas pessoais com seu casamento atual e, talvez, principalmente, sua filha mais velha. É ela que funciona como a alma da minissérie. Nicole Kidman, depois de um tempo vivendo papéis pouco memoráveis, volta a brilhar como a deslumbrante Celeste, o retrato da vida perfeita em casal. Seus momentos à sós com a terapeuta do casal (Robin Weigert) são estarrecedores, chegando mesmo a serem perturbadores de tão verossímeis. Shailene não está no mesmo patamar de suas colegas na trinca principal, mas sua personagem, por outro lado, não exige muito da atriz e o que ela fez convence perfeitamente bem como uma alma perturbada, perseguida por um passado que a assombra. Laura Dern é uma coadjuvante aqui, mas sua presença é imponente e comanda a atenção da câmera e do espectador quando sua Renata está em cena.

Big Little Lies, se julgada por seu primeiro episódio, parece ser mais uma daquelas séries que investirá no mistério central, mantendo todo o restante na periferia. Mas, muito pelo contrário, trata-se de uma obra exemplar temática e tecnicamente, que parte de um mistério para justamente abordar a muito mais interessante periferia, aqui representada pela vida menos do que perfeita de mulheres aparentemente perfeitas. Um grande triunfo de David E. Kelley e mais um acerto da HBO.

Obs: Big Little Lies foi anunciada como uma minissérie e a história realmente é auto-contida e se encerra no sétimo episódio. No entanto, há rumores de que Whiterspoon, também produtora, estaria em conversas sobre uma nova temporada. Portanto, elegi mencionar “1ª temporada” no título, torcendo para que a segunda nunca aconteça, a não ser que seja em forma de antologia, com uma segunda história completamente diferente dentro da mesma temática geral.

Big Little Lies (Idem, EUA – de 19 de fevereiro a 02 de abril de 2017)
Showrunner: David E. Kelley
Direção: Jean-Marc Vallée
Roteiro: David E. Kelley (baseado em romance de Liane Moriarty)
Elenco: Reese Witherspoon, Nicole Kidman, Shailene Woodley, Laura Dern, Zoë Kravitz, Alexander Skarsgård, Adam Scott, James Tupper, Jeffrey Nording, Santiago Cabrera, Iain Armitage, Sarah Baker, Sarah Burns, P.J. Byrne, Darby Camp, Hong Chau, Kelen Coleman, Merrin Dungey, Ivy George, Joseph Cross, Robin Weigert
Duração: 52 min. aprox. (cada episódio – sete episódios no total).

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