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Crítica | Biohackers – 1ª Temporada

por Leonardo Campos
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Os avanços obtidos pelo campo da ciência nas últimas décadas tem sido motivo de muitos debates na contemporaneidade, tanto para aqueles que se regozijam diante dos resultados positivos obtidos quanto para os preocupados com a ultrapassagem vertiginosa de limites éticos neste campo de atuação que pode ser o espaço das maravilhas, mas também, ao cair nas mãos erradas, pode ser a destruição massiva da humanidade. Biohackers, série alemã em seis episódios, lançada em 2020, discute essa abordagem geral por meio do recorte na seara da bioengenharia, âmbito do conhecimento e da experimentação que tornou possível uma série de coisas inimagináveis quando nos damos conta da longa tradição darwiniana de compreensão da vida. Criada por Christian Ditter e veiculada no serviço de streaming da Netflix, a produção discute temas que gravitam em torno das alterações da estrutura da natureza, a edição de genes promovida pela biotecnologia, o poder dos controladores de possíveis doenças pelo sequenciamento genético, em suma, os seres humanos brincando de Deus e elaborando projetos que são designers da vida. Tudo aparentemente mágico, mas também assustador.

O motivo de tanta desconfiança? O poder oriundo disso tudo e os perigos da falta de controle diante deste cenário. E controle é uma palavra-chave para compreendermos a série, afinal, em seu desenvolvimento, nos deparamos com personagens acossados pela tensão do presente e em crise diante das memórias e realizações do passado, acontecimentos que não gozam mais da possibilidade de reorganização. O que está feito já não tem mais retorno e agora é preciso que todos assumam as responsabilidades de suas ações que apresentam desdobramentos caóticos. Em suas duas linhas narrativas, acompanhamos Mia (Luna Wedler), uma jovem estudante de Medicina que acabou de chegar na faculdade situada em Friburgo para se dedicar ao curso que tanto admira, foco para a sua carreira. Seu passado é formado por tragédias que serão exploradas ao longo dos episódios, situações vinculadas a Tanja Lorenz (Jessica Schwarz), a professora mais renomada no segmento dos projetos biogenéticos, mulher que para fins narrativos, ocupa a função de arqui-inimiga da mocinha em busca de retaliação.

Diretora da Lorenz, empresa que é autoridade em manipulação genética, a ambiciosa gestora e professora deste conteúdo disciplinar trafega pelos corredores da faculdade com a pompa de ser a responsável pela pesquisa que prevê síndromes dos genes ainda em fase uterina, enfim, a possibilidade de erradicar os males e prolongar a vida humana. A sua tranquilidade, no entanto, está com os dias contados, pois a chegada de Mia vai minar muitos dos seus projetos, além de colocar as suas conquistas até então em risco. É no embate inicialmente sutil, mas depois fervoroso das duas que a série dá ritmo aos acontecimentos que ficam entre a linha temporal presente e constantemente viaja entre flashbacks e flashfowards, todos orgânicos e conduzidos adequadamente, tendo em vista não deixar Biohackers apenas dinâmica, mas também interessante e enigmática. Essas estratégias também funcionam por manter alguns segredos parcialmente revelados, explicados em partes pelo texto, mantendo assim a tensão crescente.

Com necessidade dramática de destruir a professora e revelar a verdade por detrás da falta de limites éticos nos projetos da pesquisadora, Mia se envolve numa teia de acontecimentos inesperados que a distraem do foco central, tornando ainda mais difícil o exercício de sua missão. Para quem espera uma simples vingança barata, não há nada disso na série. As motivações da garota são legítimas e estão conectadas com os estragos causados em sua família no passado, haja vista algo que envolve exclusivamente a Dra. Tanja, mulher que se acha a resposta para o futuro, uma das responsáveis por tornar Deus uma figura obsoleta. A dinâmica de interação entre as duas pode parecer novelesca. Há diálogos expositivos demais em alguns partes e a velha dualidade entre heróis e vilões que os atuais programas ficcionais tem buscado evitar, mas isso é um detalhe de ordem narrativa, provavelmente em busca de magnetizar mais com o amplo público e permitir que Biohackers discuta suas questões complexas sem tornar o discurso demasiadamente hermético ou pedante ao ponto de permitir que sua discussão circule mais.

Diante do exposto, solapados pela mudança de perspectiva, onde se parte do evolucionismo darwiniano para a sociedade regida pelas possibilidades da seleção artificial, os personagens de Biohackers se encontram diante de um polêmico debate em torno dos problemas que demarcam esse território, pois há questões favoráveis para o avanço da vida, mas preocupantes quando nos perguntamos quem serão os dominados e quem ocupará o posto de dominante neste jogo perigoso de manipulações engenhosas. São temas preocupantes quando olhamos para trás e lembramos de diversos projetos macabros envolvendo o solapar dos Direitos Humanos e afins, principalmente numa série situada em território alemão, marcado pela chaga do nazismo e da eugenia. Numa sociedade onde tudo se corrompe, complicado sentir-se seguro diante da possibilidade de roubo de dados biológicos, bem como da manipulação e invasão de privacidade, algo já muito problemático na atual era da cibercultura.

Além dos fios narrativos duais entre Mia e Tanja, temos outros personagens que ajudam a tornar os conflitos mais intensos e também ampliar o feixe de situações dramáticas da série. Jasper (Adrian Julius Tillman) é o assistente da professora, jovem que vai se envolver rapidamente com a enigmática Mia, colega misteriosa que ele inicialmente não saca os planos e propostas para a derrocada de sua supervisora. Acometido por uma condição de saúde grave, ele depende bastante de Tanja para a manutenção de sua vida. Os companheiros de dormitório de Mia, amantes de festas, drogas e bebedeira, podem até parecer pueris à primeira vista, mas são inteligentes e mordazes em seus projetos universitários. Ole (Sebastian J. Akob) é o mais excêntrico de todos, avoado, mas adora desenvolver engenhocas que podem ter alguma funcionalidade científica. Lotta (Caro Cult) é a mais baladeira, contraste de Chen-Lu (Jing Xiang), bióloga molecular que assina projetos bem interessantes. Há ainda a importante presença de Niklas (Thomas Prenn), amigo de Jasper com função narrativa de catalisador de um possível triângulo amoroso que ajuda a produção a sair apenas do debate científico e ser ficção para consumo, com dramas humanos em paralelo às críticas sociais de cunho reflexivo.

Como mencionado, dividida em seis partes, Biohackers começa com “Chegada”, episódio preambular que nos mostra Mia acompanhada num vagão de trem que passa por uma crise generalizada, pois os passageiros desmaiam misteriosamente. Será um ataque bioterrorista? Há um recuo de duas semanas e a encontramos na faculdade, em seus primeiros momentos de organização para o curso almejado. Em “Segredos”, ela consegue se infiltrar nos laboratórios de Lorenz e flashbacks nos apresentam o acidente de carro com os seus pais, dentre outros pequenos detalhes biográficos que explicam os seus conflitos atuais. No terceiro, “Suspeita”, ela está ainda mais próxima de Jasper, por motivos diversos, além de conseguir acesso ao território inimigo, a casa da professora, local onde consegue acessar informações do projeto Homo Deus. Mais adiante, em “Certeza”, Mia e Niklas se aproximam e as coisas começam a desmoronar, precedentes para “Traição”, momento da série para explicitação de identidades e novas descobertas. A culminância da tensão chega no desfecho, em “Destino”, quando o cerco se fecha ainda mais e os anseios de ambos os lados desmoronam como dominós enfileirados. É um final abrupto, mas que funciona. Inclusive nos elementos audiovisuais que o constroem.

Visualmente, a produção funciona muito bem. Tanto nos flashbacks do passado de Mia quanto nos flashfowards da viagem de trem que sabemos, vai dar em problema para os envolvidos, os realizadores mantiveram cuidados primorosos com os elementos estéticos. Na condução musical dos episódios, Fil Eisler cumpre o seu trabalho com equilíbrio, sem pender para excessos comuns no campo das tramas que carregam tanta tensão. É uma música imersiva, dosada para manter a atmosfera e envolver os personagens num clima de mistério. Eva Stiebler é um dos maiores destaques em seu design de produção adequado para cada espaço narrativo, seja na simplicidade juvenil do dormitório dos estudantes, seja na composição sofisticada e clean dos laboratórios e da casa da Dra. Tanja, domicilio que parece uma fortaleza. Fabian Rosler e Jakob Wiessner dividem a direção de fotografia, setor que também cumpre com maestria a sua função de enquadrar, iluminar e colocar os personagens em movimento. Com estrutura ideal para minissérie, Biohackers funcionaria muito bem se fechasse seus arcos apenas nos seis episódios. Precisasse de mais, poderia aumentar o número de episódios, pois a densidade dos conflitos é grande, mas algo que não necessita de outra temporada, ao menos é o que me pareceu depois do desfecho. Em seu segundo ano, a produção terá material suficiente para oferecer?

É preciso aguardar para saber. Ademais, importante salientar que Biohackers foi conduzida com acompanhamento constante de consultores da área, uma equipe de cientistas e especialistas que tornaram as discussões da série dramaticamente coesas, sem invenção de coisas que estivessem fora das possibilidades reais do estabelecimento do caos numa sociedade ameaçada pelo descontrole do poder envolvendo os campos de atuação apresentados durante os seus seis episódios. O espaço por onde circulam os personagens envolve as ações da biologia sintética, campo que mescla biologia molecular, elementos da bioengenharia e traços da química orgânica para a criação de células que sejam sintéticas, elaboradas para atender necessidades específicas. Alvo de polêmicas e muitos debates, esta é uma área que não apenas define pontos importantes para o que se vislumbra em torno do futuro da Medicina, mas também de diversas outras áreas da humanidade. Os homens e mulheres pesquisadores, aqui, saem da condição de criaturas para criadores. Em seu didático tom de alerta, o programa alemão adverte a sociedade para os perigos da manipulação de dados neste segmento, salientando as maravilhas que podem ser conquistadas, mas sem deixar de questionar a nossa capacidade de lidar com tanto poder.

Biohackers – 1ª Temporada (Alemanha, 20 de agosto de 2020)
Criadora: Christian Ditter,
Direção: Christian Ditter, Tim Trachte
Roteiro: Tanja Bubbel, Nikolaus Schulz-Dornburg, Johanna Thalmann
Elenco: Luna Wedler, Jessica Schwarz, Adrian Julius Tillmann, Sebastian Jakob Doppelbauer, Caro Cult, Cristina Andrione, Jin Xiang, Simon Tiefenbacher,
Duração: 6 episódios, com cerca de 90 min.

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