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Crítica | Blacksad: Alma Vermelha

por Luiz Santiago
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Todo tempo histórico tem os seus medos paranoicos. Tem as suas vozes de abuso de poder e gritos de culpa a qualquer grupo inimigo, como se fosse a raiz de todos os males. Tem os seus juízes de suposição e convicção, que passam a vida carimbando pessoas “disso” e “daquilo” com base em aparências e ideias que não entende ou jamais iria se dispor a entender. No Universo noir de Blacksad, já tivemos isso como abordagem de ódio contra as mulheres e os dissabores sociais para as classes pobres, ou para a corrupção de parte dos poderosos, que não se importam com as vidas que o caminho dos seus milhões ceifará (Em Algum Lugar Entre as Sombras); já tivemos os suspiros de segregação e “morte aos diferentes” na ascensão de grupos neonazistas ou mesmo uma nova formação de clã para a KKK (Nação Ártica); e agora em Alma Vermelha temos a paranoia do tipo “os comunistas estão chegando para nos dominar!” junto a um outro medo, o de uma Guerra Nuclear.

Talvez mais do que nos outros álbuns, existe aqui uma demarcação temporal bastante evidente, algo que a arte intocável de Juanjo Guarnido nos proporciona o tempo inteiro, até bem mais que o texto de Juan Díaz Canales. A trama se passa em um tempo equivalente ao do Macartismo nos Estados Unidos – caça às inexistentes bruxas dominadoras comunistas empreendida pelo Senador Joseph McCarthy –, mas assim como o roteiro fez nos outros dois álbuns da série, mescla eventos históricos de períodos antes e depois, sempre colocando uma investigação importante para Blacksad e criando, em torno dele, uma teia de contatos que tende em terminar de maneira trágica ou melancólica, afinal, o tom noir precisa ser mantido.

Blacksad está quebrado e com o moral baixo. No começo da história ele lamenta seu atual estado financeiro e pessoal, aceitando trabalhar como guarda-costas de um milionário um tanto excêntrico de Las Vegas. A preparação da história pelo roteiro de Canales é mais suave que a de Sombras e Nação, lançando algumas pistas que posteriormente serão recolhidas ou aludidas no texto, como parte de um significado maior para os personagens, seja isso de forma ideológica, seja de forma pessoal/sentimental. Há um certo didatismo nos primeiros pontos da trama que infelizmente voltarão aparecer, envoltos em uma lufada de personagens com ações suspeitas, em casos de difícil julgamento (vide a referência do autor à Mossad, o que me fez lembrar muito os filmes Walk on WaterMemórias Secretas), o que certamente é um perigo para um mundo polarizado onde qualquer um pode, de repente, se tornar um “traidor da pátria”.

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Um dos grandes pontos que Canales levanta é a própria dualidade dessa briga de ideias, adicionando caraterísticas dos primeiros anos da Era de Pós-Verdade (a trama foi escrita em 2005) e colocando-as em uma época onde o diferente apresentava uma lista de ameaças a tudo: nação, igreja, família, crianças, vida… A pergunta que fica, no entanto, é a seguinte: e se o tal suspeito realmente fosse um criminoso? Um espião? Alguém trabalhando para os russos? Tentando levar planos de desenvolvimento da tecnologia “da grande e feliz nação americana” para Berlim Oriental? O contexto não é novo e as implicações morais, éticas e filosóficas em torno disso sempre chamam a nossa atenção, porque acabam em um dilema que a maioria de nós não se sente exatamente confortável em resolver.

À medida que a investigação avança e novos assassinatos (ou tentativas de) aparecem, aspectos do nosso mundo contemporâneo aparecem no mundo de Blacksad ainda como um ensaio, como se estivéssemos assistindo ao plantio da semente que geraria certas divisões de blocos políticos, certos caminhos falaciosos de “argumentação”, e as ondas de ódio justificadas por algum tipo de teoria, com atos condenáveis sendo tratados com o máximo de circunstâncias atenuantes possíveis, sempre que alguém bem quisto pelos que movimentam as engrenagens do Estado, da Justiça, da Mídia e da Sociedade comete algum erro. Infelizmente, o roteiro de Canales acaba caindo na própria armadilha ao tratar uma certa coruja com um tipo de condescendência afetada, inclusive colocando um lado de Blacksad que não havia sido mostrado antes e que, pelo menos para mim, não é interessante. Aqui, a forma com o detetive é guiado pega um atalho que acaba bagunçando um pouco o enredo, seja pelo desenvolvimento que este novo olhar dá à investigação, seja pelo tipo de provocação, permissão ou contenção que faz.

Alma Vermelha tanto pode se referir aos socialistas e comunistas engajados que vemos nessa história, como também outra coisa importante sobre a qual não vou falar, para não dar spoiler. O diálogo com as diferenças de ideias políticas e a paranoia da população + as atitudes (de instituições e pessoas) são exploradas pelo autor, assim como as diferentes medidas tomadas por cada grupo, considerando sua condição social e poder político. Existem momentos doces, cômicos e fortemente questionadores na história, mas o desenvolvimento do mistério e o destino de alguns personagens passam por alguns tropeços, o que não significa que a saga é ruim. Trata-se, na verdade, de uma ótima aventura política com conhecidos exemplos reais, satirizando e analisando a ideia de um fantasma que sai e entra geração, mantém-se no imaginário popular, muitas vezes tomando o espaço de conceitos e outros fantasmas verdadeiramente preocupantes, mas, por conveniência ou estupidez das massas e da mídia, não são sequer citados. E o resultado para a população, como sempre, não poderia deixar de ser o pior possível.

Blacksad: Alma Vermelha (Blacksad – Tome 3: Âme Rouge) — França, Espanha, 2005
Editora original: Dargaud
No Brasil: Sesi-SP Editora (abril de 2018)
Roteiro: Juan Díaz Canales
Arte e cores: Juanjo Guarnido
Letras: Ségolène Ferté
62 páginas

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