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Crítica | Blacksad: Nação Ártica

por Luiz Santiago
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Toda sociedade tem um sonho. Um sonho que normalmente vem acompanhado de uma promessa. E que dura até o dia seguinte, quando interesses diferentes se chocam, quando algumas pessoas descobrem que podem usar de (muitas) outras para manter um determinado nível de conforto e controle territorial pelo máximo de tempo possível, e quando ideias mais elaboradas procuram erguer uma coluna onde um novo sonho de sociedade repousará. Através da nossa História, tivemos momentos de “acerto de contas” de grupos com aqueles que “contaminavam a promessa de um mundo melhor”, um mundo restrito, onde só uma determinada cor de pele é aceita. Um “novo mundo” que começa em negação absoluta do que é ser humano, especialmente pela marca geral da nossa espécie que, nessas pregações, simplesmente é colocada de lado. A diversidade.

Naturais de um país onde esse tipo de ideia gerou um dos regimes mais infames da Europa pelas mãos do “Generalíssimo” Francisco Franco, Juan Díaz CanalesJuanjo Guarnido criam em Nação Ártica, o segundo volume da série Blacksad, uma história de segregação racial onde cabe uma organização fascista de animais brancos supremacistas que se assemelha bastante à Ku Klux Klan. A trama se passa nos subúrbios, onde uma garotinha é sequestrada e ninguém, além da professora dela, parece querer descobrir o paradeiro da menina. O primeiro momento da história já dá as cartas de crimes de ódio, de segregação racial, preconceito, racismo e crise econômica que assolam um lugar, dando a oportunidade da violência urbana crescer e da região cair nas mãos de grupos extremistas, nesta aventura, representados tanto pelos animais de pelos e penas brancos e de pelos, penas e couro negro e marrom.

Guarnido faz mais um tremendo espetáculo de arte. Assim como Em Algum Lugar Entre as Sombras, o desenhista passa o clima de desesperança dos animais escuros diante de mais um golpe social. Buscando referências de roupas dos Panteras Negras dos Estados Unidos (para a violenta organização Black Power chamada Garras Negras), assim como de comportamentos dos supremacistas, ele conseguiu mostrar dois tratamentos para uma causa étnica com cenas de grande impacto visual. No volume passado, uma das cenas mais chocantes foi a que mostrava um dos perseguidores de John Blacksad baleado no chão. Aqui também temos uma chocante cena de morte, de uma personagem encontrada em uma posição terrível, num quadro grande e com uma descrição ainda mais chocante através do roteiro. O fato de ser inverno durante a aventura acrescenta maior força dramática às pregações da organização Nação Ártica e adiciona um ar opressivo ao enredo, que é fortemente marcado por cenários escuros e ambientes decadentes.

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A história já começa bastante tensa e com a excelente apresentação de Weekly, a doninha de “cheiro suave e discreto”. Um excelente personagem.

A fim de manter uma série de coisas ocultas e usá-las para as reviravoltas no final, Canales acabou caindo em alguns problemas que me fazem ver esta aventura um tantinho abaixo da anterior, o que parece ser contrário a opinião da maioria dos leitores do volume. Na minha visão, existe um desnecessário pé atrás do roteiro na conversa de Blacksad com a professora no início da história. A conversa é permeada de bons diálogos, mas o seu conteúdo geral e a ligação com a sequência seguinte deixa o roteiro levemente confuso, e não do jeito bom. Falta coisa aqui. E exatamente por isso é que o grande elemento de reviravolta no final espanta por dois motivos bem diferentes. Um, pelo óbvio choque da revelação sobre quem é determinada personagem. E outra, pelo motivo apenas visual de ligação entre essa mesma personagem e o urso polar com trágico destino. Para a maioria, essa lombada textual teve pouco ou nenhum peso na construção da história e isso, somado ao conteúdo da trama, que é sim mais intenso que o da primeira, acabou não interferindo na avaliação final. Não foi o meu caso.

Se em Algum Lugar Entre as Sobras o clima de violência, corrupção e podridão social parecia estar em todo lugar, mas ainda havia algum tipo de esperança no horizonte, aqui em Nação Ártica a visão é muito mais pessimista. Como já foi dito, o roteiro apresenta ideias mais fortes e dilemas profundos nessa história, cabendo um drama distanciado de (possível) incesto e de pedofilia que chega a enfurecer o leitor. Mas a despeito da professora e da amizade entre Blacksad e Weekly (que acrescenta um calor fraterno à história, alguma coisa bonita em meio a tanto horror), o texto parece olhar com desconfiança para o futuro. Alguns problemas imediatos foram resolvidos e certos ajuntamentos dispersos, mas a ideia que pregam e o sentimento que vimos tanto no roteiro quanto na arte, ainda permanece. Não se mata uma ideia. E como não há absolutamente nenhum olhar de forças institucionais para criar condições que mudem essa realidade, entendemos que as consequências da Nação Ática ainda permanecerão castigando e matando muitos bichos. Os de bom coração e grande coragem ajudam a tornar isso mais suportável para os que estão à sua volta e podem ser vítimas desse tipo de violência. Mas o problema ainda segue. E não há real esperança de que ele desapareça tão cedo. Assim como em nossa própria sociedade.

Blacksad: Em Algum Lugar Entre as Sombras (Blacksad – Tome 2: Arctic-Nation) — França, Espanha, 2003
Editora original: Dargaud
No Brasil: Panini (setembro de 2006) / Sesi-SP Editora (outubro de 2017)
Roteiro: Juan Díaz Canales
Arte e cores: Juanjo Guarnido
Letras: Ségolène Ferté
52 páginas

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