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Crítica | Blade Runner, o Caçador de Androides (Versão do Diretor – 1992)

por Ritter Fan
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Blade Runner, o hoje cultuado filme sci-fi de 1982, dirigido por Ridley Scott, é, como tive oportunidade de comentar em minha crítica do Workprint, usado em exibições-teste meses antes de seu lançamento no cinema, é uma bela oportunidade para os cinéfilos terem uma visão de bastidores de uma grande produção cinematográfica. Notoriamente, o filme que chegou às telonas no começo da década de 80 não é o filme imaginado originalmente, algo que só viria mesmo à lume em 2007 (e que será objeto de crítica separada). Mas, entre uma coisa e outra, a Warner patrocinou e lançou a chamada Versão do Diretor que, como será visto logo abaixo, não é exatamente “do Diretor”, ainda que seja algo bem próximo.

Da Versão “Falsa” do Diretor à Versão “Menos Falsa” do Diretor

Como abordei na análise do Workprint, essa cópia inacabada, desaparecida até 1989, acabou sendo achada e projetada, com autorização da produtora, em um festival. Nem a própria Warner sabia que era o Workprint e essa descoberta a fez ver cifrões e a agendar sessões especiais em que a versão de testes foi “marketeada” como a Versão do Diretor. Claro que Ridley Scott, que até então nada sabia, não gostou dessa brincadeira e soltou o verbo, publicamente afirmando que ele não concordava com essa exploração indevida de algo inacabado e que ele não tinha chancelado. Para evitar essa exposição negativa, a Warner capitulou e tirou o filme do cinema, mas não antes de ele ser projetado um punhado de vezes em Los Angeles e São Francisco, reacendendo o interesse pelo filme.

Dessa forma, vendo possibilidades financeiras interessantes, tanto a Warner quanto Scott sentaram para encetar discussões sobre uma Versão do Diretor de verdade. Mas eis que o diretor estava ocupado demais com a produção de Thelma & Louise e ele percebeu que não poderia se dedicar a arregaçar as mangas nas alterações que queria fazer. Assim, o que Scott elaborou foi um lista de detalhadas anotações que foram executadas por Michael Arick, diretor, roteirista e produtor que, à época, era o especialista da Warner em conservação e restauração de filmes, tendo trabalhado com a recuperação de clássicos como Juventude Transviada e Pacto Sinistro, além da restauração da visão original de Elia Kazan em Uma Rua Chamada Pecado. Juntamente com Les Healey, o montador-assistente de Blade Runner, Arick foi reunindo as peças do quebra-cabeças deixado por Scott, especialmente a localização e recuperação de todas as cópias possíveis do filme, de forma que fosse possível extrair as sequências com melhor qualidade para a que seria – ainda que somente até 2007 – a versão definitiva da obra.

Portanto, a Versão do Diretor de 1992 é apenas parcialmente do diretor, que participou indiretamente de sua execução. Scott aprovou sim o resultado final, mas sua versão de verdade ainda demoraria alguns anos para ser lançada.

Pequenas Grandes Alterações

Além do retorno da integralidade da trilha de Vangelis – que havia recebido enxertos de trabalhos anteriores de Jerry Goldsmith no Workprint – a Versão do Diretor manteve a eliminação completa da narração de Rick Deckard, inclusão forçada pelo estúdio com base nos comentários do público-teste original, que ficou confuso com a história. Essa narração, devo confessar, é algo que compreendo ser desnecessária e repetitiva que explica demais o filme, mas que, sinceramente, eu aprecio por emprestar mais ainda um ar noir à produção. Mas essa exclusão, sem dúvida, faz do resultado final um filme tecnicamente melhor, ainda que, em minha mente, eu cite mentalmente a narrativa a cada cena em que ela deveria estar.

Uma narração, porém, cuja ausência em relação ao Workprint é muito sentida, é a única dessa versão de testes, em que Deckard, prostrado no topo do prédio, com Batty morto à sua frente, diz que o androide demorou muito tempo para morrer, ao mesmo tempo sofrendo e saboreando seus momentos finais de vida. Trata-se de uma abordagem belíssima para o fim do último androide Nexus-6 na Terra e que empresta outro significado ao seu amor pela vida. A retirada na Versão do Diretor foi muito infeliz.

Outro aspecto que foi forçado pelo estúdio goela abaixo foi o final excessivamente feliz, com Rick e Rachael chegando a um local verdejante. O público-teste não gostou da versão seca que encerrava a história, com os dois simplesmente indo embora do apartamento de Deckard sem uma “conclusão” clara, e o jeito foi dar a entender que o casal chegaria a um paraíso sobre a Terra, algo que claramente feria de morte a narrativa sombria original, acompanhada por um desenho de produção escuro, sujo, desarrumado e niilista. Na Versão do Diretor, prevalece a versão original do Workprint, sem lampejos “florestais” ao final, deixando incerto o destino dos dois, muito mais em linha com toda a história contada ao longo das quase duas horas de projeção.

Essas alterações, porém, apesar de significativas para o filme, tornando-o mais redondo, nem de longe são as mais importantes se as compararmos com a famosa inserção do “sonho com unicórnios” e da pergunta que Gaff faz a Deckard logo depois da morte de Roy Batty. Mas, claro, esse assunto merece um capítulo próprio.

Androides Sonham com Unicórnios?

Quando Deckard está ao piano, em seu apartamento, ele cai no sono e um estranho sonho com um unicórnio surge em tela. A sequência realmente original, que intercalava o sonho e o personagem não foi localizada com qualidade boa o suficiente para inserção na nova versão do filme, pelo que Arick teve que usar uma sequência alternativa, menos intrusiva e mais, digamos, descontextualizada, algo que Scott corrigiria na Versão Final. De toda forma, para que o espectador entenda a dimensão do que esse sonho significa, é necessário que comecemos pelo começo. E, por começo, quero dizer lá em 1968, com o clássico Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick.

Na seminal obra sci-fi, PKD tem como tema central a discussão filosófica sobre o que exatamente nos faz humano, lidando até mesmo com a mais abrangente questão de realidade x ficção. Lá, em diversas passagens, ele põe em dúvida a humanidade de Deckard, fazendo-o e fazendo-nos crer que ele é um androide. A resolução, lá, é bem diferente do que em qualquer versão do filme, mas é importante lembrar o quão importante é o assunto já no nascedouro da obra.

Em 1982, quando Scott encerrou a produção de seu filme, ele deixou essa dubiedade permeando a obra que chegou aos cinemas. Como mencionei na crítica das versões cinematográficas, há três momentos em que essa questão é trazido à tona, criando uma muito bem-vinda ambivalência. O primeiro deles é quando vemos, mais de uma vez, o apartamento de Deckard tomado de fotografias antigas em preto-e-branco depois de aprendermos que os implantes de memórias fazem parte dos planos de Eldon Tyrell de criar replicantes mais humanos. Notem que são fotografias das mais variadas e usando tecnologia muito anterior ao que seria razoável supor que os pais ou demais antepassados de Deckard teriam. Além disso, vemos Rachael perguntar ao policial se ele alguma vez já teria passado no teste Voight-Kampff e ele não responde. Finalmente, a única coisa que Gaff diz para Deckard, depois da morte de Batty, é que ele fez “o trabalho de um homem”, deixando tanto ele quanto Rachael viverem.

Não satisfeito com algo que, em sua visão, teria ficado imperceptível, Scott que, desde então, afirmou que, em sua mente, Deckard é um replicante, tratou de tornar as coisas consideravelmente mais óbvias. E é aí que o sonho do unicórnio entra.

Eldon Tyrell deixa claro que a inserções de memórias passadas é parte de seu projeto para fazer androides mais humanos e que Rachael tem as memórias de sua sobrinha. Deckard, em um momento particularmente azedo, cita à uma chorosa Rachael diversas informações sobre o “passado” dela que ele jamais poderia saber, reforçando a questão do implante de memórias. Igualmente, o assunto é trazido à tona pelas fotografias de Leon que ele esquece em seu apartamento quando tem que fugir de Deckard e Gaff.

Dito isso, temos que lembrar que Gaff não gosta muito de Deckard sem que exista uma razão palpável além de, talvez, ciúmes por seu chefe Bryant preferir que Deckard cuide dos replicantes, e não ele. E, como se isso não bastasse, Gaff é um exímio artista de origami, deixando suas dobraduras por onde passa. Qual é a dobradura que vemos no chão do hall de entrada do apartamento de Deckard quando ele e Rachael estão fugindo? Sim, um unicórnio. É a pista que precisamos para concluir que Gaff sabia dos sonhos de Deckard e que somente se Deckard fosse um replicante com memórias falsas implantadas é que isso seria possível. Conclusão: Deckard é, assim como Rachael era, um replicante que não tem consciência do que é. Em cima disso tudo, na versão em DVD – não mais disponível – da Versão do Diretor, a frase que Gaff diz a Deckard depois da morte de Batty não é “Você fez o trabalho de um homem”, mas sim “Mas você tem certeza que você é um homem?”, o que reforça essa noção.

Em meu entendimento, a sequência onírica retira qualquer sombra de dúvida sobre esse aspecto, dúvida essa que persistiria se ela não tivesse sido inserida. Com isso, pelo menos para mim, o filme perde parte de seu charme, de suas elucubrações filosóficas. Não que ele se torne um filme ruim, muito longe disso, mas, ao mastigar o assunto, o espectador é tratado de forma paternalista demais, impedindo que ele tire suas próprias conclusões.

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A Versão do Diretor (ou quase) é um meio-termo entre o Workprint e a Versão Final, com suas vantagens e desvantagens também em relação às versões cinematográficas. Cabe ao espectador assistir todas e escolher sua preferida.

Blade Runner, o Caçador de Androides – Versão do Diretor (Blade Runner – The Director’s Cut, EUA/Reino Unido/Hong Kong – 1992)
Direção: Ridley Scott (com trabalho de Michael Arick e Les Healey)
Roteiro: Hampton Fancher, David Webb Peoples (baseado em romance de Philip K. Dick)
Elenco: Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, M. Emmet Walsh, William Sanderson, Brion James, Joanna Cassidy, James Hong, Morgan Paull, Kevin Thompson, John Edward Allen, Hy Pyke
Duração: 116 min.

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