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Crítica | Blonde (2022)

Uma vida soterrada por um mito.

por Ritter Fan
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Andrew Dominik não faz filmes para agradar ninguém facilmente ou mesmo que sejam fáceis de ver. E não é nem uma questão de hermetismo ou complexidade necessariamente, mas sim que o cineasta tem uma visão no mínimo bastante particular de como fazer Cinema e de como retratar seus personagens, especialmente quando lida com versões fictícias de pessoas reais, algo que vem desde sua estreia em longas, o razoavelmente esquecido Chopper – Memórias de um Criminoso, estrelado por Eric Bana. Portanto, não deveria ser surpresa alguma que Blonde, que conta uma versão altamente ficcionalizada da vida de Norma Jeane, mais conhecida como Marilyn Monroe, é uma obra polêmica, pesada, melancólica, difícil de ver e impossível de lidar com passividade, seja para um lado ou para o outro.

Notem que tenho evitado – e evitarei ao longo da crítica – usar os termos biografia e cinebiografia, pois o que Dominik coloca na tela definitivamente não tem nenhuma pretensão de ser uma cinebiografia de Jeane/Monroe (essa dicotomia é importante), mas sim, como o próprio Netflix coloca em sua sinopse, uma “cinebiografia fictícia” o que é, obviamente, uma contradição em termos, mas que deixa claro que não se trata de algo facilmente classificável. Afinal, a obra é baseada no festejado livro homônimo da escritora americana Joyce Carol Oates, publicado originalmente em 2017, que é, como claramente indicado na capa, “um romance”, não uma biografia no sentido tradicional da palavra. Portanto, é importante ajustar as expectativas sobre coisas como fidelidade histórica – o que filme nenhum, mesmo os baseados em fatos, tem obrigação de seguir – e um senso estranho de “respeito” à figura de Marilyn Monroe, como se sua memória tenha sido tratada com desrespeito no longa, uma percepção que considero equivocada.

Blonde é, para quaisquer fins, uma interpretação da vida de um ícone cultural, uma espécie de ideia (não idealização!) que Oates tem sobre Jeane/Monroe e que ela colocou no papel, com Dominik, então, fazendo sua tradução para o audiovisual. E essa ideia de Oates é a ideia de sofrimento, de verdadeira miséria e é isso que torna o filme difícil de ver e uma experiência que não sei como não definir como incômoda, desagradável mesmo, o que é sem dúvida o objetivo da obra. Trata-se da ideia do quanto Norma Jeane tentou lutar a vida inteira para manter vivo pelo menos algum traço de sua personalidade sem que a de Marilyn Monroe, a criatura que a entidade difusa chamada de Indústria do Entretenimento – ou Hollywood, se assim quiserem – sempre preferiu e sempre impôs a ela. Trata-se de uma história de abandono, abuso, violência e morte. E, se afastarmos a lente de Jeane/Monroe, veremos que se trata da triste história da própria Hollywood, pois como é comum – mesmo que não elejamos ver, pois é isso que fazemos, podem ter certeza – o tipo de exploração que a protagonista sofreu, não é mesmo?

E esse é ponto. Não interessa saber a realidade dos fatos, se, por exemplo, Gladys (Julianne Nicholson em um papel pequeno, mas poderoso), mãe de Norma Jeane (Ana de Armas), tentou afogá-la na banheira quando criança, se seu pai era mesmo quem sua mãe diz que é, ou se Norma Jeane, já adulta, teve um caso poliamoroso com os filhos de Charles Chaplin e Edward G. Robinson, vividos, respectivamente, por Xavier Samuel e Evan Williams ou mesmo se o jogador de beisebol aposentado, Joe DiMaggio (Bobby Cannavale), seu segundo marido, era abusivo com ela ou o quanto o dramaturgo Arthur Miller (Adrien Brody) a idealizava como Magda, seu primeiro e platônico amor. O que realmente interessa, o que realmente é o coração de Blonde é o quanto as situações que vemos – e algumas são verdadeiramente asquerosas, de virar o rosto mesmo – são verossímeis para uma estrela de Hollywood cuja única verdadeiramente desejada característica era seu apelo sexual, era o quanto ela era bela e o quanto ela, por essas características, era idealizada por todos.

Porque não, Blonde não explora essa imagem ultrassexualizada de Marilyn Monroe, não abusa de absolutamente nada a fim de diminuir tanto Monroe quanto Jeane. Muito ao contrário, o que parece exploração gratuita, uma repetição daquilo que todos nós temos na cabeça sobre Monroe (sim, todos nós menos os três “especialistas” na vida dela cujo único pensamento sobre a atriz é o porquê ela foi esnobada pela Academia e nunca foi indicada ao Oscar) é exatamente isso, uma forma de colocar na nossa frente o que nós achamos de Marilyn Monroe e o quanto ignoramos completamente a pessoa que tenta aparecer vez ou outra, pessoa essa conhecida como Norma Jeane. E, ao fazer isso, o que o longa-metragem consegue é, em uma tacada só, desnudar Hollywood (o escândalo envolvendo Harvey Weinstein não foi há tanto tempo assim para já ter sido esquecido, não é mesmo?), desnudar a famosa e sem rosto Indústria do Entretenimento (é curioso, mas é também triste como Blonde é a segunda produção de quase três horas em um mesmo ano sobre um ícone cultural americano explorado por todos que morreu cedo demais em razão de drogas) e desnudar nós mesmos e nossa visão, nossa ideia de Monroe como um símbolo sexual. O filme usa a imagem coletiva que todos têm e desejam da atriz para primeiro deixar claro que ela é um construto, uma criação de Hollywood (chega a ser um exagero o quanto isso é repetido palavra por palavra ao longo da projeção, com o uso de Whitey, vivido pelo ótimo Toby Huss, maquiador particular de Monroe, como alguém capaz de fazer esse construto aparecer) e, depois, mostrar o que foi cobrado de Jeane por esse construto.

Aliás, o cuidado absoluto da produção em repetir detalhadamente os figurinos icônicos de Marilyn Monroe, suas fotografias e cenas mais famosas como a do vestido esvoaçante em O Pecado Mora ao Lado (na verdade, a imagem que temos dessa cena sequer está realmente no filme, e sim, somente, na campanha publicitária) é não só um feito técnico impressionante, como ele serve ao propósito de afastar Jeane e colocar Monroe no destaque, ou seja, é mais um elemento que soterra a pessoa real e, para todos os efeitos, indesejada e nunca amada, para colocar em seu lugar uma criação, uma invenção midiática que, temos que lembrar mesmo que isso doa pela simples realização do fato, só realmente existe porque nós, o público, quisemos, vimos e aceitamos sem termos sequer a coragem de olhar o preço que Norma Jeane – e outras tantas atrizes – tiveram e ainda têm que pagar. E o pouco que vemos da voz de Jeane ressurgir tentando ser mais do que Monroe é, tentando realmente fazer valer seu desejo de ser uma atriz de verdade – a comparação que ela faz entre Cinema e Teatro é mordaz, um tapa na cara que não está mesmo distante dos fatos – é recebido com desdém, com incredulidade e com um sorriso que basicamente significa algo como “você é uma loira burra de corpo escultural, portanto use o que tem e não fique inventando moda”.

Dito tudo isso sobre a ideia, o conceito do filme e o que ele provavelmente queria mostrar sobre sua protagonista, cabe falar de Ana de Armas, claro. A bela atriz cubana foi uma escolha improvável para viver Norma Jeane/Marilyn Monroe, mas uma que reputo acertada possivelmente pelo que isso pode ter representado psicologicamente para a atriz, ainda sem verdadeiros grandes papeis no cinema, em termos de dedicação e mergulho em seu trabalho aqui. O resultado não é 100% todo o tempo, diria, pois por vezes a atriz aparece por trás de Jeane e Monroe justamente como uma atriz vivendo Jeane e Monroe, mas, durante grande parte da projeção, ela consegue não viver uma ou outra necessariamente, mas sim uma sendo a outra e vice-versa. É fascinante ver Jeane tornar-se Monroe e Monroe voltando a ser Jeane em momentos chave do longa, como na sequência da notoriamente difícil filmagem de Quanto Mais Quente Melhor e são cenas assim que realmente mostram que Ana de Armas encontrou o tom exato de uma personagem ficcional particularmente complexa em um filme que não facilita nada as coisas para ninguém.

E isso me leva, finalmente, ao que mencionei no início da crítica, que é a visão particular do diretor sobre como fazer Cinema. A imagem já hiperssexualizada de Marilyn Monroe é trazida à tona novamente, mas eu já disse que isso faz parte do cerne da obra que deu base ao longa e também ao longa, nenhum dos dois uma biografia. O objetivo é usar a imagem que todos nós temos dela contra nós mesmos de forma que vejamos o outro lado da moeda. Dominik tinha como fazer o que fez sem sequências que poderiam ser chamadas de sensacionalistas como o momento nojento com JFK (Caspar Phillipson não sem querer vivendo o mesmo personagem que viveu no também desafiador e polêmico Jackie)? Sim, poderia, mas não com o mesmo efeito, não com a mesma força. Portanto, não é esse o ponto de meu comentário sobre o Cinema do diretor, mas sim o quanto ele é enamorado pela sua técnica, algo que já era visível mais claramente em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, mas que, em Blonde, ganha não só outros contornos, como muito mais intensidade. E isso nem sempre é bom.

Para começo de conversa, o roteiro de Dominik sofre pela repetição temática. Seu texto, apesar de econômico na quantidade de diálogos (há proporcionalmente muito poucos se pararmos para pensar), não deixa nada para a imaginação, não deixa nada para o espectador trabalhar a memória, fazendo questão de visualmente trazer à tona elementos do que foi mostrado antes um sem número de vezes. É quase um cacoete narrativo que, ao colocar mais uma peça no desenvolvimento da personagem, precisa retornar ao passado – algo que é feito de maneira variada, admito, mas mesmo assim cansativo a partir de certo ponto – para mostrar o que essa peça significa no mosaico sendo montado. Não é exatamente didatismo, mas sim, diria, demonstração de insegurança por parte de Dominik como roteirista, talvez não confiando no nível de atenção do espectador (e eu sou o primeiro a afirmar com tranquilidade que esse nível de atenção, hoje em dia, é realmente diminuto) ou talvez achando que, sem reiterar, sua história perde força, o que de forma alguma é verdade.

E, na cadeira de diretor, Dominik parece se divertir em sua caixinha de areia, usando todos os truques do Manual do Diretor para passar sua mensagem, sejam eles os clássicos fechamentos de íris mais usados na época dos filmes mudos, sejam as mudanças de razão de aspecto, as transições entre fotografia em preto em branco e colorida, sempre com muita granulação, seja o uso de computação gráfica ou efeitos práticos para fazer cenas como o de um aborto a partir de um ponto de vista, digamos, inusitado e bastante aflitivo. Mesmo considerando a duração de quase três horas – que reputo desnecessária, mas esse nem é o grande problema -, esse derramamento de técnicas audiovisuais, todas muito bem executadas, vale afirmar, é informação demais, de maneiras variadas demais para lidar com a progressão narrativa quase episódica do longa, o que acaba, ironicamente, tirando espaço da história e da própria Ana de Armas que, claro, é sempre o destaque, mas que por diversas vezes não tem o espaço necessário para desenvolver sua personagem da maneira que tinha toda a capacidade de desenvolver. Não sei se isso é algo autoconsciente em razão da crítica de Jeane ao Cinema que o roteiro deixa bem clara, mas, mesmo que seja, a pletora de transições, inversões, plongées, contra-plongées e tudo mais leva à impressão de que boa parte do que vemos é uma espécie de currículo audiovisual de Andrew Dominik que prova que ele conhece basicamente todas as técnicas, mas não o momento de parar de usá-las quase que simultaneamente.

Esses maneirismos – por falta de uma palavra melhor – retiram muito do brilho de Blonde. Ou, talvez melhor dizendo, colocam brilho demais, de certa forma fazendo o que Monroe fez para Jeane, ou seja, soterra tudo que ilumina. É como se o diretor, insatisfeito com a substância da história, tenha decidido partir para adorná-la com tantos penduricalhos audiovisuais que o efeito é o mesmo que uma árvore de Natal carregada de enfeites: os galhos acabam ficando vergados, dando a impressão de que são murchos. E o efeito cascata de suas escolhas é evidente, com um certo grau de caos visual, a redução do tempo de Ana de Armas para dar mais densidade ainda à sua performance, a já discutida repetição temática e, finalmente, o aumento da duração da película para talvez mais tempo do que fosse estritamente necessário para contar a história.

Entre qualidades e problemas, Blonde, porém, acaba triunfando em sua abordagem de um mito da cultura pop. Talvez não seja um triunfo no grau que poderia ter sido se Dominik tivesse evitado a abundância de técnicas audiovisuais em sua muito particular caixinha de areia. Norma Jeane, em sua melancolia, sua dor, sua miséria e sua tentativa de viver e deixar sua marca, desaparece por completo sem encontrar amor e nos deixa, apenas, Marilyn Monroe, um produto arrancado dela a força por uma máquina inclemente e monotemática de criar mitos que existem, apenas, para girar a esteira da fábrica de ilusões custe o que custar. E nós… bem… nós aceitamos isso com extrema naturalidade até… Uma vergonha que Blonde expõe inclementemente…

Blonde (EUA, 28 de setembro de 2022)
Direção: Andrew Dominik
Roteiro: Andrew Dominik (baseado em romance de Joyce Carol Oates)
Elenco: Ana de Armas, Lily Fisher, Adrien Brody, Bobby Cannavale, Xavier Samuel, Julianne Nicholson, Evan Williams, Toby Huss, David Warshofsky, Caspar Phillipson, Dan Butler, Sara Paxton, Rebecca Wisocky, Tygh Runyan, Michael Drayer, Ryan Vincent, Patrick Brennan, Eric Matheny, Lucy DeVito, Scoot McNairy, Ravil Isyanov, Catherine Dent, Michael Masini, Chris Lemmon, Ned Bellamy, Haley Webb, Eden Riegel
Duração: 166 min.

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