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Crítica | Boardwalk Empire – 1X01: Boardwalk Empire

por Ritter Fan
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Primeira regra da política, garoto: nunca deixe a verdade atrapalhar uma boa história.
– Nucky, citando Mark Twain.

Não tem muito tempo, em minha crítica do episódio piloto de The Mandalorian, afirmei que ele havia sido um dos mais eficientes inícios de temporada inaugural em anos, o que não é pouco considerando a quantidade nada saudável de séries que assisto. No entanto, ao relativizar minha afirmação em relação ao primeiro episódio de Boardwalk Empire, magnífica série da HBO que foi ao ar entre 2010 e 2014, com 56 episódios ao longo de cinco temporadas, ela chega a soar absolutamente ridícula.

Criada por Terence Winter (que tem no currículo nada menos do que Família Soprano e O Lobo de Wall Street) com base no livro investigativo Boardwalk Empire: The Birth, High Times, and Corruption of Atlantic City, de Nelson Johnson, a série aborda a ascensão de Enoch “Nucky” Thompson (Steve Buscemi), político corrupto de Atlantic City baseado em Enoch L. Johnson, que se aproveita da famigerada Lei Seca para aumentar sua fortuna e aprofundar seu controle sobre a cidade nas décadas de 20 e 30 do século passado. Apesar de o Ato Volstead, que entrou em vigor nos EUA em 17 de janeiro de 1920, ter sido muito utilizado em obras audiovisuais por ter sido um dos responsáveis pelo aumento do crime organizado dos EUA, o recorte específico que Winter faz aqui não havia sido alvo de obras de vulto antes e é impressionante notar como o showrunner foi capaz de costurar essa narrativa micro dentro do universo macro do crime especialmente na região central (Chicago mais especificamente) e nordeste do país (New Jersey e Nova York mais proeminentemente) e sem deixar de abordar questões importantíssimas como o retorno dos soldados americanos da Primeira Guerra Mundial, aqui representados por James “Jimmy” Darmody (Michael Pitt), ambicioso jovem protegido por Nucky e a igualdade de direitos entre homens e mulheres e tudo o que gira ao redor disso, como a violência doméstica, o trabalho feminino e assim por diante.

Essa riqueza temática ganha complexidade muito rapidamente na série e o episódio piloto teve, portanto, a ingrata função de apresentar esse panorama rico e variado, além de um elenco avantajado, em apenas 72 minutos. Para isso, Winter criou um roteiro cuidadoso, quase científico em termos de uso de textos expositivos e estabelecimento orgânico de personagens que foi levado à telinha por ninguém menos do que Martin Scorsese, um dos produtores executivos da série em seu único trabalho atrás das câmeras ao longo de todas as temporadas. A combinação é, já deixando as papas na língua de lado e sendo justificadamente hiperbólico: absolutamente perfeito em cada mínimo detalhe. Desde o começo “três dias no futuro” que imediatamente prende a atenção do espectador, passando para o “retorno ao passado recente” que estabelece como marco inicial a sensacionalmente irônica e completamente sacana forma como a “virada” da Lei Seca acontece, logo depois de um discurso emocionado do pilantra de marca maior Enoch perante uma associação de mulheres completamente felizes com o que elas percebem – com razão, devo dizer – o demônio na garrafa, tudo é como um relógio suíço que acabou de sair da fábrica. Não há nenhuma sensação de arrasto ou lentidão e cada grande personagem ganha seu tempo para brilhar, com especial destaque para a atuação monstruosa de Buscemi, sem dúvida no melhor papel de sua carreira.

O rigor da reconstrução de época, aqui incluídos os automóveis (que Rolls Royce mais lindo o do Enoch, não?), as fachadas de lojas (aquela dos bebês prematuros é dolorosa!) e os figurinos (Enoch é a epítome do cafajeste bem vestido…), como também os interiores luxuosos do Ritz-Carlton onde o protagonista mora e dos salões de festa, além da modéstia meticulosamente construída das casas populares e dos alambiques ilegais e o próprio – e clássico – boardwalk (ou “calçadão”) suspenso de madeira que ganha vida constantemente, é de se tirar o chapéu a cada fotograma. E as lentes de Scorsese fazem o que ele é mestre em fazer em diversas de suas obras: transformam o ambiente em mais um importante personagem que ganha o mesmo tipo de construção de suas contrapartidas humanas, compondo um conjunto que respira e vive em um conjunto harmônico e inseparável que esconde – e revela – a sujeira por trás de toda cidade grande.

É particularmente prodigioso ver como tantos personagens marcantes da vida real da época circulam no episódio – Al Capone (Stephen Graham) em começo de carreira, Arnold Rothstein (Michael Stuhlbarg) já consolidado em sua vida mafiosa e o esquentado Charles “Lucky” Luciano (Vincent Piazza) – sendo inseridos organicamente na narrativa sem que haja qualquer resquício de confusão sobre quem faz o que aonde. Estabelecem-se as divisões, as máfias de cada estado e as futuras ascensões de personagens aqui “menores” sem que o episódio pareça pesado ou disperso, com o foco permanecendo em Enoch e, em outro grau, em Jimmy. O mesmo vale para os personagens fictícios Margaret Thompson (Kelly Macdonald) que ganha um prodigioso arco completo já aqui nesse começo e o agente Nelson Van Alden (Michael Shannon) que, mesmo sendo de todos o menos desenvolvido, ganha, aqui, o ar obsessivo e duro que seria destacado nos episódios seguintes.

Em suma, esqueçam The Mandalorian como parâmetro de qualidade. Esse episódio piloto aqui é que é uma verdadeira aula de como se começar uma série, algo que Scorsese repetiu no começo de Vinyl, mesmo que a temporada, depois, tenha desapontado.

*Crítica feita no contexto do Especial Martin Scorsese, pelo que não haverá críticas dos demais episódios, ainda que as críticas das temporadas estejam em nossos planos de médio e longo prazo.

Boardwalk Empire – 1X01: Boardwalk Empire (EUA, 19 de setembro de 2010)
Criação e showrunner: Terence Winter (baseado em obra de Nelson Johnson)
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Terence Winter
Elenco: Steve Buscemi, Michael Pitt, Kelly Macdonald, Michael Shannon, Shea Whigham, Aleksa Palladino, Michael Stuhlbarg, Stephen Graham, Vincent Piazza, Paz de la Huerta, Michael Kenneth Williams, Anthony Laciura, Paul Sparks, Dabney Coleman
Duração: 72 min.

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