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Crítica | Bom Trabalho (1999)

Desejo e dominação.

por Fernando JG
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Quando Bazin confere ao Diário de um Pároco de Aldeia (Robert Bresson, 1951) o caráter de obra-prima, naquele famoso texto “Diário de um Pároco e a estilística de Robert Bresson”, ele o qualifica não como um simples adjetivo de ordem subjetiva, mas invoca que o filme seria linha A porque seus atributos positivos se apresentam a nós quase como um objeto material de tão evidentes que são, transcendendo opiniões de ordem pessoal, afinal, o enredo toca a uma determinada sensibilidade e por isso passível a comover tanto o crítico quanto o espectador (André Bazin, O que é o Cinema). Se é verdade que o nível de aderência de uma película pode caracterizar o seu valor fílmico, me parece que o narcísico Bom Trabalho (Claire Denis, 1999) reclama, com um soberbo poder de autoridade, que seja reconhecido como uma obra-magna, de modo que é tão poderoso o ofício cinematográfico empregado na construção da ideia do filme que este termo ao qual me refiro – e qualifico a obra – torna-se não apenas uma ideia abstrata e subjetiva mas uma evidência quase física e tátil, pois nos move os sentidos. Sem querer definir qualquer coisa, mas entendendo já de saída a sua originalidade, me parece que Bom Trabalho alcança um lugar de cânone ainda na estreia e configura, dentro da filmografia desta cineasta francesa, uma espécie de ápice precoce. 

Há um problema central no que diz respeito ao título do filme, sobretudo à sua tradução para o português: ‘Beau Travail’ é traduzido em termos de ‘Bom Trabalho’. A tradução está certa, mas não abarca o núcleo de significação do termo no original. Denis não utiliza do adjetivo “bon” para caracterizar ‘travail’, isto é, não fala em ‘Bon Travail’, mas em ‘beau’ de ‘Beau Travail’. Isso significa que há uma íntima harmonia entre a semântica do filme e o título que lhe nomeia. Para se aproximar do sentido conferido à titulação original, o correto seria ‘Belo Trabalho’, porque ‘beau’, no francês, está fazendo referência à ideia de beleza, daquilo que é belo, e esta noção é a característica mais essencial da sua película. Contudo, não é uma beleza abstrata. Ao buscar o ideal de perfeição estética, a cineasta encontra no corpo masculino, e em seus traços extremamente marcados de masculinidade, a canonização da beleza, provocando um prazer de ordem catártica no espectador. 

De tal modo que não é de graça que uma das cenas de entrada focaliza, num movimento lento que sobe dos pés à cabeça, a imagem de um homem, que descobrimos sem camisa. E é de baixo para cima que a cineasta consegue minar a masculinidade mais determinante que compõe a sua proposta fílmica, uma vez que, subindo, percebemos as marcas corporais de um soldado que se desnuda pouco a pouco diante das lentes da câmera. E são marcas de músculo, de força. A diretora passeia corpo a corpo expondo uma vitrine de soldados que estão ali, parados, dispostos para o olhar contemplativo da câmera guiada pela magnífica Agnès Godard: ombro a ombro, costas largas, peitoral à mostra. Beleza masculina. Tamanha é a sinestesia aplicada no ângulo médio da câmera que cada gota de suor é vista e sentida.

Agnès e Denis têm a plena consciência de que para os padrões da beleza contemplativa, como previsto já na tradição crítica – de Aristóteles a Kant -, o belo é sempre a medida, nunca pequeno demais (close-up e zoom), nem tão grande (planos longos e/ou abertos demais). E só uma câmera com enfoque médio, como é feito durante todo o longa-metragem, poderia oferecer, de modo exato, aquilo que busca transmitir para o espectador, pois assim podemos ver a totalidade e seus detalhes. Assim, neste mesmo ritmo, sob o sol escaldante do continente africano, Claire Denis condensa, nos primeiros dez minutos, toda a sua ideia estética no shot fotográfico mais impecável e emblemático de sua carreira, captando, como se fotografasse uma escultura, Gilles Sentain sem camisa ao sol. Com este incrível trabalho, Agnès Godard garante para a película de Denis o César de melhor fotografia no ano seguinte ao lançamento. 

Inspirado por Herman Melville e seu Billy Budd, o argumento atravessa situações cotidianas do treinamento da Legião Estrangeira Francesa no continente africano. O enredo é simples, embora com fortes doses de psicologismo, e enfoca as memórias do comandante chefe Galoup (Denis Lavant) enquanto escreve diários de recordação em sua casa em Marseille, rememorando o tempo em que comandava os rapazes da Legião. O que move a trama é sua lembrança agitada e perturbadora de um soldado em específico, o perigoso e sedutor Gilles Sentain (Grégoire Colin), que chega ao grupo depois, chamando-lhe a atenção imediatamente. Aos poucos, algo começa a se apossar do comandante e o que deveria estar escondido vem à luz, forçando-o a conviver, de maneira inaudita, entre sentimentos primitivos: inveja e desejo pelo recrutado.

A mise-en-scène é funcional e portanto vai muito além de ser um simples background para a performance dos heróis. Quero dizer, não é que ela é funcional, é que se a mise-en-scène não se relacionar profundamente com o contexto fílmico e não operar de modo análogo a uma extensão dos seus protagonistas, estamos diante de uma má construção cênica. A rusticidade da secura de um clima agreste casa perfeitamente com a persona dos personagens, que atuam com movimentos agressivamente bélicos, contudo, expressivamente hedônicos. Eles se destroem num ambiente infértil propício à destruição. Ainda, temos um deslocamento de personagem profundamente ensaiado, performado à passos cronometrados, regrados como num desfile militar, resultando numa estrutura antitética em que ao buscarmos belicismo encontramos poesia. Pouco a pouco, o silencioso texto em branco de Denis e Jean-Pol Fargeau desconstrói a masculinidade num local em que a ideia do masculino é predominante, fazendo com que seus personagens estabeleçam afetos e proximidades sugestivas enquanto, ao exporem constantemente seus corpos descamisados, partilham de abraços e olhares entre si. 

De modo que se temos um silêncio proposital é porque alguma tensão já está estabelecida em todas as linhas da narratividade fílmica. Esta tensão de que falo chama-se desejo. Nada é mais primitivo do que a ideia de um desejo recôndito entre homens num contexto de reclusão social, sobretudo quando esta proibição atrela-se à impossibilidade, seja pela distância objetal, pelo contexto social ou pelo escalão do cargo que ocupa. No entanto, de algum modo, isso se manifesta no detalhe da performance dos atores, como num olhar oblíquo, numa postura sugestiva ou mesmo numa insistente implicância – esta última, a típica Negação freudiana. Por isso mesmo, há uma complexa construção de enredo que perpassa todo um psicologismo como motor da trama, que obviamente está aderida à perspectiva do comandante, afinal, são dele as lembranças. O filme de Claire Denis não dá a ver como o explícito Querelle de Fassbinder (1982), ele se faz todo entre gestos silenciosos, se desnudando lentamente. Tudo se encontra dentro do não-dito. 

O embate entre Galoup e Sentain no último ato – digladiando-se brutalmente apenas pelo olhar e sem tocar um ao outro – constrói uma potente tensão cênica, expondo a inquietude que abala, inevitavelmente, a estrutura da hierarquia militar (afinal, estamos falando de um Superior e um Inferior rivalizando posições sociais dentro das fileiras do exército), jogando luz sobre sentimentos e paixões (páthos) gritantes mas silenciosas, que são desnudadas apenas pelo conflito entre os olhares que se encontram quando estão face a face, prestes ao combate físico. Galoup sente-se ameaçado pela presença do belo Sentain ao mesmo tempo em que degusta as mais primitivas paixões obsessivas em relação a ele. São movimentos duplos que levam, ao fim, à destruição, como numa batalha entre Eros e Thanatos. Claire Denis articula o que há de mais animalesco dentro da dinâmica do desejo por meio de um tom muito verossímil. Tudo é estonteante mas nada é irreal. 

Se preciso dizer algo mais, é que a cineasta ainda revisita situações clássicas de sua filmografia, retrabalhando, num manejo estético-psicológico invejável, questões neocoloniais e ideias de dominação corporal e mental. O narcísico Beau Travail é o ofício mais perfeito de Claire Denis, explorando com método, rigorosidade formal e profundidade narrativa, mesmo que num texto inaudito, a potência dos impulsos mais remotos e implícitos que comandam o jogo lúcido da atração entre dois sujeitos. Inesquecível.

Bom Trabalho (Beau Travail, França, 1999)
Direção: Claire Denis
Roteiro: Claire Denis, Jean-Pol Fargeau (baseado em Herman Melville e seu Billy Budd)
Elenco: Denis Lavant, Grégoire Colin, Michel Subor, Richard Courcet, Nicolas Duvauchelle
Duração: 90 min. 

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