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Crítica | “Born in the U.S.A.” – Bruce Springsteen

Apesar do título, um álbum universal.

por Kevin Rick
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I get up in the evenin’And I ain’t got nothin’ to sayI come home in the mornin’I go to bed feelin’ the same wayI ain’t nothin’ but tiredMan, I’m just tired and bored with myselfHey there, baby, I could use just a little help

Lançado em 1984, Born in the U.S.A. não é apenas o álbum mais famoso de Bruce Springsteen, pois é, também, um contraditório monumento cultural que traz um espelho incômodo dos Estados Unidos que retrata. Ao longo de doze faixas, o “Boss” transforma frustrações nacionais em uma radiografia da América reaganista, capturando o desencanto de uma classe trabalhadora que viu seu sonho evaporar diante da desigualdade crescente, da globalização brutal e das feridas abertas do Vietnã. O que poderia ser apenas um disco de rock com refrões gigantes, sintetizadores oitentistas e energia de arenas se revela como uma obra que esconde certas críticas atrás da imagem patriota que a produção ganhou.

Esse paradoxo foi, desde o início, o grande mal-entendido de Born in the U.S.A.. Seu single-título foi rapidamente apropriado como hino patriótico, quando, na verdade, Springsteen canta o oposto: o abandono dos veteranos, o cinismo do governo e a falência do sonho americano. A faixa Born in the U.S.A. é uma elegia travestida de alegria. A força da canção está justamente no contraste em que a banda explode num arranjo triunfal enquanto a letra descreve um trabalhador descartado pela mesma nação que o enviou à guerra. É o rock do desencanto com bandeira e tudo.

Esse é o tom do álbum inteiro, em uma profunda empatia pelas pessoas comuns esmagadas pelo sistema. Springsteen observa os deslocados da América industrial, como operários e veteranos, transformando suas micro-histórias em crônicas que soam universais. Mesmo quando fala de um caso de amor, o pano de fundo social nunca desaparece. O álbum é político no conteúdo, mas sempre encaixado por melodias divertidas e bem humoradas nos gestos.

A produção marca uma guinada sonora. Se Nebraska (1982) foi um trabalho nu e sombrio gravado no gravador de quatro canais em casa, Born in the U.S.A. chega como seu inverso estético: sintetizadores brilhantes, bateria explosiva de Max Weinberg, teclados de Roy Bittan guiando boa parte dos arranjos e riffs de guitarra mais polidos, com um mix de inspirações, apesar de ainda influenciado pelo jazz e o blues. É um Springsteen grandioso, aberto ao pop, mas sem perder a densidade narrativa. Essa dualidade faz o álbum soar simultaneamente acessível e profundo.

Depois da faixa-título, Cover Me acelera o ritmo com groove e sensualidade quase funk, como se oferecesse abrigo emocional contra o mundo hostil lá fora (claramente uma metáfora sobre estresse pós-traumático), mas embalado numa canção amorosa mais padrão. Essa abordagem segue na cômica Darlington County, em que dois amigos buscando trabalho dirigem para o sul apenas para encontrar promessas vazias e mulheres. A música soa leve, quase festiva, mas há um subtexto que reforça um país que não tem mais lugar para seus rapazes de mãos calejadas.

O que fica bem claro logo no início do disco é a facilidade da produção em capturar o imaginário coletivo estadunidense com canções feitas para uma road-trip de muitas cantorias. Afinal, como resistir ao Sha la la la? Essa pegada cômica atravessa muito bem as críticas para evitar que o álbum se torne muito dramático, mas tampouco superficial. É uma linha tênue que Springsteen caminha surpreendentemente bem.

Uma espécie de contraparte para 9 to 5, temos Working on the Highway assumindo a perspectiva do operário condenado a trabalhos forçados em uma história triste mascarada por upbeats, enquanto Downbound Train mergulha no desamparo de um homem que perdeu tudo, meio que uma crônica à lá Jó para o meio-oeste americano. O arranjo destacado pelos teclados sustenta o lamento quase silencioso de quem já não espera redenção, no que é a faixa mais triste do álbum. De certa forma, inicialmente parece até destoar um pouco do ritmo da produção, mas nada que atrapalhe a experiência. 

Inclusive, a alternância fica ainda mais clara em I’m on Fire, que destila o minimalismo emocional do disco. Em menos de três minutos, Bruce constrói uma canção assombrada por desejo, vício e solidão. Cada batida é um suspiro. Um eco. A interpretação de Springsteen é contida, mas latejante em um blues interior, daqueles que queimam devagar, como se estivéssemos num quarto escuro onde a frustração respira junto do ouvinte. Sem dúvidas, um dos momentos mais hipnóticos da carreira do cantor.

No segundo lado da obra, No Surrender reacende a chama da juventude, mas com um olhar maduro: amizades e ideais que resistem ao tempo, mesmo quando o mundo insiste em apagá-los. A juventude idealista ficou para trás e o mundo real exige concessões. Mesmo assim, Springsteen insiste: alguns sonhos merecem ser teimosos. É melancolia com a energia de um show de rock. As guitarras vêm em camadas, uma base rítmica aberta e outra com acordes ascendentes. O refrão dobra vozes e empilha energia, é uma das maiores paredes sonoras do disco, quase Springsteen se encontrando com o power pop.

Bobby Jean, por sua vez, é despedida e celebração em uma carta para um amigo que partiu, escrita com nostalgia doce, mas sem amargura. Bruce canta a ausência como quem reconhece que crescer é também deixar ir e que certas pessoas ficam presas no que fomos, não no que somos. As guitarras soam como memórias que se desmancham no ar, com o piano liderando a harmonia, enquanto o sax de Clarence Clemons dá a cara emocional da faixa em um solo final que é uma despedida pura em forma de sopro. É adeus sem trauma, mas com saudade transbordando.

I’m Goin’ Down alterna humor e melancolia, com um romance que se desgasta ao som de risos nervosos; uma leitura irônica da rotina amorosa. Bateria e baixo formam uma base “puxada para baixo” (algo muito bem personificado pela voz de Springsteen), com groove simples e repetitivo, com aparente intenção de mostrar desgaste por repetição. Já Glory Days é quase uma sátira melancólica da velha e boa nostalgia, com um hino sobre o passado que todos insistem em reviver, enquanto o presente escapa. É outra canção que se apropria bem de certos clichês estadunidenses com uma melodia agradável e ligeiramente reflexiva.

Dancing in the Dark, o maior single do disco, mostra o desejo urgente de se movimentar, de respirar dentro de um corpo que parece parado na vida. A harmonia de synth-pop e os teclados em alto volume criam um clima de festa, mas a letra é desespero puro: “I ain’t nothing but tired / Man, I’m just tired and bored with myself”. Bruce está cansado, entediado consigo mesmo e implorando por mudança, enquanto entrega um dos refrões mais icônicos da década. A pista de dança vira válvula de escape do desencanto e do tédio.

O encerramento, My Hometown, retoma o tom contemplativo de Nebraska. O ciclo se fecha: Bruce olha para a cidade onde cresceu, lembra das ruas que moldaram sua identidade e testemunha o declínio que as consome. Há uma cena específica — a fábrica fechando — que parece resumir toda a tragédia americana que o disco narra. O hino épico do começo encontra sua verdade dura aqui: a pátria que prometeu dignidade não entregou. Fecho agridoce, onde a memória coletiva se encontra com a falência econômica. A música se transforma em despedida e a despedida em síntese do colapso da classe trabalhadora americana, no que é um desfecho contraditório para uma produção majoritariamente conhecida por sua energia.

No conjunto, Born in the U.S.A. é uma obra que se equilibra entre o pop massivo e o comentário social mais agudo da carreira de Springsteen. A genialidade do álbum está na forma como ele disfarça o desespero em festa e, ao fazer isso, revela que, na América de Bruce, esperança e frustração são indissociáveis, transformando a desilusão da classe trabalhadora em música para estádios e para rádios. É possível cantar a plenos pulmões sobre tudo que se perdeu porque, de alguma maneira, isso também é sobreviver. Bruce não ergue bandeiras, ele veste as cicatrizes, fazendo o ouvinte ficar animado e pensativo ao mesmo tempo.

Born in the U.S.A.
Artista: Bruce Springsteen
País: EUA
Lançamento: 1984
Gravadora: Skarkali
Estilo: Rock, Pop
Duração: 46 min.

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