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Crítica | Boy Erased – Uma Verdade Anulada

por Leonardo Campos
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A reflexão sobre a cura gay é um tema polêmico e anda bastante em voga na contemporaneidade, inclusive no Brasil, um país que até há pouco tempo gozava de excelente reputação na discussão sobre os direitos dos homossexuais, parcela da população alvo de preconceitos e perseguições históricas. Em 1977, a Organização Mundial de Saúde colocou a homossexualidade como patologia mental em seu diverso catálogo de “anomalias”, algo que teve reversão apenas em 17 de maio de 1990, data considerada marco histórico para os integrantes e simpatizantes ao movimento. Boy Erased – Uma Verdade Anulada, produção agendada para estrear no Brasil, cancelada pela distribuidora sob a alegação de questões comerciais, com lançamento direto para o mercado de Home Video reacendeu as chamas da tensão no que concerne a tolerância, o preconceito e a insensata cura gay, ponto nevrálgico da narrativa que versa também sobre outras demandas tangentes ao ponto dramatúrgico central.

A narrativa merece ser descoberta por todos os públicos, não apenas pela questão temática, mas por seus atributos estéticos e dramáticos. Com estreia mundial no Festival de Cinema de Telluride, além de ótima repercussão no Festival Internacional de Toronto, a produção de 115 minutos nos apresenta ao trajeto de redenção dos personagens da família Eamons. Marshall (Russell Crowe) é o patriarca, homem religioso que durante o dia administra, como proprietário, uma concessionária de automóveis, atividade dividida com a função de pastor exercida numa igreja do Arkansas. Ele é o pai de Jared Eamons (Lucas Hedges), filho que é fruto do casamento com Nancy Eamons (Nicole Kidman). Eles formam uma família aparentemente perfeita para os padrões dos moradores do cinturão bíblico estadunidense, até que o jovem rapaz assume não conseguir conter mais a sua homossexualidade. A alternativa do pai é chamar outros pastores para aconselhamento e direcionar o seu jovem filho para um programa de cura gay.

A chegada ao programa, guiada pela condução musical de Danny Bensi, é brilhante. Inteligentemente adornada por um som que nos remete ao militarismo e a marcha de soldados, as imagens captadas pela direção de fotografia de Eduard Grau nos faz adentrar numa experiência sufocante. O primeiro contato é com Victor Sykes (Joel Edgerton), terapeuta de conversão da sexualidade dos jovens humilhados pelo charlatão. Adiante, entre as idas e vindas da narrativa sem linearidade cronológica, a edição de Jay Rabinowitz cumpre bem o seu trabalho, inserido personagens e acontecimentos que nos ajudam a compreender o que acontece na linha dramática mais atual da história.  Sem muitas opções, Jared segue pacificamente para o programa, pois a ameaça é grandiosa, isto é, perderá os amigos e familiares e caminhará sozinho em sua vida. Assim, o jovem se submete aos desmandos da terapia abusiva e absurda, repleta de recursos praticamente medievais de coerção, necessário para redimir os homossexuais obrigados a seguir à risca as demandas do programa, num processo hediondo de anulação e perversão, desrespeito total aos direitos humanos básicos.

Um dos pontos mais importantes de Boy Erased – Uma Verdade Anulada é o cuidado na condução dos arcos dramáticos de seus personagens. Jared é delineado com as peculiaridades de todo adolescente na fase de descoberta, sem os típicos estereótipos simplificadores. Os pais, interpretados com garra por Russell Crowe e Nicole Kidman são humanizados, diferente dos possíveis monstros que poderiam se tornar caso o roteiro não fosse cuidado nestes aspectos. Eles sofrem diante da situação, não por que desejam isso, mas por conta da ignorância e do pensamento religioso calcado em interpretações literais bíblicas, algo que ocorre também no popular Orações para Bobby, narrativa televisiva tematicamente semelhante. O instrutor responsável por narrar como é ser um gay convertido, interpretado por Flea, baixista da banda Red Hot Chili Pepers é assustador, mas ainda assim humano.

Boy Erased – Uma Verdade Anulada traz o espectador para dentro da história, ao investir num design de produção cuidadoso, assinado por Chad Keith. Visualmente significativo, o setor consegue captar a atmosfera de seres humanos contidos, graças aos cenários de Adam Willis e Mallorie Coleman e da direção de arte de Jonathan Guggenheim, profissionais que colaboram para a boa condução da estética do amadurecimento, mais conhecida pelo termo coming-of-age, algo que vimos recentemente em Me Chame Pelo Seu Nome e Lady Bird – A Hora de Voar. Maduro, com personagens em evolução e esteticamente charmoso, o filme é uma produção de belas imagens e desempenhos dramáticos, mas que trata de temas densos e psicologicamente profundos e importantes para entendermos o lugar das questões homossexuais no cenário das questões políticas e sociais da contemporaneidade.

Sair do armário ou ser submetido ao processo de cura gay são temas de alta complexidade e o cinema já nos mostrou isso em numerosas oportunidades. Em Longe do Paraíso, o angustiado marido de Julianne Moore, interpretado por Dennis Quaid, é um homem que se “percebe” homossexual enquanto casado e com filhos, em plena década de 1950, o que o leva a tentar a ineficaz terapia para reversão de sua condição, sem resultados, como já esperado. Orações Para Bobby nos apresenta Sigourney Weaver, uma mulher de linha extremista, angustiada pelo suicídio de seu filho, logo após a sua declaração de que “não aceito um filho gay”. No histriônico O Primeiro Que Disse, um jovem decidi assumir a homossexualidade aos pais e demais familiares, mas as coisas não caminham tão bem, o que abala a estrutura da suposta família tradicional. E o que fazer quando se é um representante religioso, isto é, um padre, mas se descobre homossexual. Este é o dilema do poético O Padre. São narrativas tangenciais, mas que não fogem do escopo de Boy Erased – Uma Verdade Anulada, uma história sobre busca por redenção e compreensão no que diz respeito ao seu lugar no mundo e em sua relação com o “outro”, dentre outras celeumas da vida numa coletividade cerceada por dogmas e tensões.

Boy Erased – Uma Verdade Anulada (Boy Erased/Estados Unidos, 2019)
Direção: Joel Edgerton
Roteiro: Garrard Conley, Joel Edgerton
Elenco: Britton Sear, David Ditmore, David Joseph Craig, Emily Hinkler, Flea, Jesse LaTourette, Joe Alwyn, Joel Edgerton, Josh Scherer, Lindsey Moser, Lucas Hedges, Madelyn Cline, Matt Burke, Nicole Kidman, Russell Crowe, Tim Ware, Troye Sivan, Victor McCay, William Ngo, Xavier Dolan
Duração: 115 min

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