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Crítica | Brasília: Contradições de uma Cidade Nova

Leituras modernistas: revisão crítica da Arquitetura Moderna.

por Fernando JG
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Mais do que um ímpeto artístico de matriz renovadora, o movimento modernista refere-se a um projeto nacional que, desde o início, visou responder à questão da identidade e da tradição do povo brasileiro. Se 1822 marca a ruptura política, 1922 é conhecido pela dissolução das amarras culturais, momento de cessar a importação bruta de modelos europeus e construir um próprio. Apoiado na pesquisa estética, na atualização da inteligência artística brasileira e na estabilização de uma consciência criadora nacional, o modernismo brasileiro, embora tenha seu ponto de partida nas vanguardas históricas enquanto modelo de arte, tem como fundamento de criação o aspecto popular. A ideia era, como todos sabem, conceber a identidade de um povo, que, afinal, era destituído dela. Como uma vez propunha Paulo Emílio Salles Gomes: nada nos era estrangeiro, pois tudo o era. 

Não obstante, encontremos um diálogo potente com as massas populares e uma preocupação em ver o povo brasileiro em sua real condição – algo que reflete na temática de cunho popular, como na exploração folclórica, e mesmo na forma artística, como na oralidade poética, prosa solta, pinturas figurativas, cosmopolitismo musical etc. -, sabe-se que a arte moderna fora consumida por uma elite intelectual e acadêmica. A radicalidade da ruptura gerou uma arte que era primitiva e absolutamente culta. O modernismo paulistano foi uma utopia festiva que, embora apontasse para as contradições que marcam historicamente a cultura brasileira, pouco se engajou nelas. Me parece chover no molhado dizer que o impulso da geração carnavalesca dos anos vinte é menos engajada do ponto de vista político-social do que os anos 30, 40, 50, sobretudo 60, com o Cinema Novo.  

Fato é que a estética modernista é o reflexo, em arte, de um projeto maior de modernização de um país, que, em sentido amplo, acabaria atingindo todos os setores da sociedade. Antes de nos darmos conta de que temos uma condição crônica de subdesenvolvimento, vigorou a convicção de que essa modernidade que enfim chegava ao Brasil poria fim, ao menos teoricamente, ao atraso socioeconômico. A elite cultural tinha muito clara essa ideia: da possibilidade de renovação do Brasil. O projeto de Brasília não começa nos idos de 1950, mas sobretudo tem a sua semente nos debates dos anos vinte, afinal, a sua construção no governo Juscelino Kubitschek é apenas a apoteose e a coroação máxima de toda a ideia de um progresso fundador que tem na concepção de “cidade moderna” o clímax do desenvolvimentismo e da civilização, como observamos em Pauliceia Desvairada.

Mesmo que caminhássemos a passos largos no processo de atualização da sociologia urbanística da cidade, como havia em São Paulo e no Rio de Janeiro, nos encontrávamos sempre com essa aparente contradição, isto é, a de esteticamente nos apresentarmos modernos mas sustentados por um insuperável arcaísmo econômico, o fardo de ser, o Brasil, um país essencialmente agrícola e não industrial, de importação e não exportação. A retórica colonial permanecia como motor da economia. Modernizava-se rapidamente a vitrine maquinaria do país, mas o grosso da população permanecia pobre. Quem logo percebeu esse desfalque foi a geração de 30 (romancistas, pintores, historiadores), que saía da utopia metropolitana que marcou o movimento heroico de 1922 e denunciou, com toda a força, que no interior do Brasil as coisas jamais melhoraram. Quem não se lembra das telas devastadoras de Cândido Portinari retratando o desamparo e a fome, como há em Os Retirantes

A Arquitetura, que havia ficado de fora daqueles anos áureos, firma-se, a partir dos anos 40-50, como uma das releituras desse modernismo, discutindo todos esses mesmos problemas a que me reportei anteriormente e colocando em jogo não apenas o projeto da nação, mas a construção empírica da mesma. A arquitetura moderna supera o desenho que marcou o design barroco-neocolonial e propõe algo afinado às propostas revolucionárias do debate intelectual do início do século, investigando também a questão da identidade e da origem do brasileiro. A grande característica do projeto arquitetônico nacional do século XX é o engajamento na reflexão a respeito do uso do espaço de modo racional, isto é, funcional, que pudesse promover um senso de comunidade e coletividade, com grandes vãos que sejam capazes de alocar a população, com espaçamento para entrada de ar e luz solar, numa compreensão fina do clima tropical do país. Nesse sentido, toda a elaboração espacial é pensada a partir de quem vai ocupá-la, por isso é funcional. Havia um germe de um pensamento socialista no modelo urbanístico que se propunha, de modo que se fazia ver no próprio design da construção, mas que foi traído posteriormente por uma ocupação gentrificada do espaço. Tamanha era a empolgação com os prédios brasileiros que, em 1943, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque inaugurou a exposição Brazil builds, discutindo os avanços do projeto do Brasil para a arquitetura. 

Eis aí o que seria Brasília: um lugar feito do zero e com abertura para se tornar o maior emblema da Nova Arquitetura no país, uma vitrine do sucesso da modernidade, o triunfo da estética, o fim do atraso, uma cidade sem abismos sociais; espelho do Brasil. Não é de graça que a grande propaganda da época era a de que cresceríamos 50 anos em 5, numa das maiores obsessões progressistas da nossa breve história. O grande problema é que a “Cidade Nova” não resolve seus problemas sociais, mas salta sobre eles, isto é, salta sobre o atraso, como se eles não existissem, eis a mágica. Por isso Joaquim Pedro de Andrade nomeia o seu curta-metragem de Contradições de uma Cidade Nova. Como pode uma cidade erguida do zero já nascer com tantos atrasos? 

Num tom de denúncia, ao mesmo tempo em que dialoga com todo esse contexto a que me amparei anteriormente, o curta-metragem de Joaquim Pedro de Andrade, autor de Macunaíma e O Homem do Pau-Brasil, questiona esse vão existente entre a proposta de modernizar o Brasil e a condição de um povo que constitui a massa nacional e que nunca obteve amparo pelo processo modernizador. Que tal aquele corte em plano-sequência do ônibus, no curta, atravessando uma circunferência contemplando toda a monumental cidade nova, feita nos moldes de Le Corbusier com aberturas para o sol, para o vento, com concretos horizontais montados em finos pilares, enquanto, num arroubo, mostra, em contrapartida, a população vinda do Norte e Nordeste reclamando que em Brasília não há espaço para eles? 

Essa é a contradição insuperável que rege o país. O projeto moderno deságua em mais desigualdade. A esperança que emerge a cada traçado que esboça as figuras geométricas que forjam as estruturas da cidade de Brasília vai desembocando num antiquado projeto burguês que, por ironia, transformaria esse ambiente numa vitrine, mas agora de contradições. Hoje, Brasília mostra-se esteticamente antiquada mediante seu descompasso indecoroso entre aquela moderna monumentalidade arquitetônica, que tinha uma proposta, digamos, popular, e seu excludente processo de gentrificação. 

Aqui, o documentário, para expor o seu objeto-problema, se adapta para um estilo cinéma-verité. Cinema da verdade, pé no chão, câmera na mão, observação do real e entrevistas com a gente local. Joaquim está sempre tangenciando o tema da contradição, sobretudo quando demonstra que a estética da cidade moderna vai de encontro direto, num assombroso conflito, com as casas feitas para alocarem os trabalhadores que construíram a cidade. Lá, no que pode-se chamar de “periferia” de Brasília, não há nada que flerte com ideias modernas, mas sim com uma padronização de casas num estilo fácil de habitação, feitas apenas para inserirem a população pobre que, não podendo morar nos grandes prédios que esbanjam luxo, encontram nessas moradias um lugar minimamente seguro para viver – que é muito mas muito abaixo do padrão da “Brasília Moderna”, e ainda assim, numa triste constatação, superior à realidade que viviam em seus respectivos estados. Embora o Brasil seja o país com maior número de construção moderna no mundo, afinal, temos uma cidade inteira elaborada sob o signo do progresso, pouco dessa vanguarda que privilegia o aspecto coletivo chega de verdade ao povo, que permanece na margem. Veja que na capital do país apenas uma parte é acompanhada por esse impulso renovador, enquanto a outra revela a face de um projeto incompleto. 

Há, enfim, uma certa funcionalidade da narração em off que se sobrepõe à imagem, e que divide o roteiro em três atos marcados por distintos tópicos inseridos num mesmo problema. Explica-se, num geral, e de maneira didática, aquilo que aparece na tela, bem como os preceitos da construção urbanística e sua tradição. Observamos que se num primeiro ato o narrador tem a finalidade de contextualizar o público da questão vigente, o segundo cruelmente desequilibra a balança ao evidenciar uma cidade “como as outras”, quando era para ser diferente; e encerra por fim num terceiro ato que constata, após um trabalho de pesquisa num estilo de cinema-investigação politicamente engajado, o legado da contradição modernista e o fracasso do progresso brasileiro, que não consegue superar seus impasses.

O curta-metragem traz à luz a ironia trágica de uma Cidade Nova que já nasce com antigos problemas e acaba se tornando uma vitrine, de fato, mas vitrine esta que, para o desespero dos urbanistas que a construíram, expõe um profundo impasse de origem social e portanto denuncia um país que permanece num estado crônico de subdesenvolvimento. A contradição não é, portanto, um problema de Brasília, mas de todo um Estado Nacional em sentido amplo. Num sistema antitético, não é difícil constatar que a modernidade, no documentário, mostra-se por um lado como a alegria de uma elite cultural e por outro como um problema que se converte em tristeza. Alegria pelo avanço mas sobretudo constatação melancólica porque evidencia um projeto de nação que, sendo longe do minimamente esperado, coloca-se sempre pela metade, incompleto, fraturado e portanto desigual desde a sua gênese. 

Brasília: Contradições de uma Cidade Nova (Brasil, 1968)
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Roteiro: Jean-Claude Bernardet, Luís Saia, Joaquim Pedro de Andrade
Duração: 23 min.

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