Três artistas, três visões completamente distintas da MPB. Em 9 de julho de 1983, Caetano Veloso, João Bosco e Ney Matogrosso dividiram o palco do Festival de Montreux, numa noite que revelaria algumas das mais interessantes potências da MPB. Produzido por Marco Mazzola com a engenharia de som de David Richards, o registro captura essa diversidade musical com uma clareza impressionante. Cada instrumento tem seu lugar definido, cada voz tem seu território sonoro. O resultado soa limpo, mas sem ser asséptico ou artificial.
Caetano abre a noite estabelecendo um clima de intimidade. Em Maria Bethânia, ele transforma a irmã em personagem mítica, enquanto Vinicius Cantuária na bateria e Tomaz Improta nos teclados criam uma base delicada e sugestiva. A melodia caminha devagar, permitindo que cada palavra encontre seu peso exato. Terra aprofunda essa atmosfera, com Caetano revisitando seu passado de exilado numa interpretação que equilibra melancolia e aceitação.
A escolha de Eu Sei Que Vou Te Amar revela a inteligência do repertório. Ao invés de buscar o impacto imediato, Caetano prefere a sedução gradual, transformando o clássico de Tom e Vinicius numa confissão falada baixinho. Eclipse Oculto adiciona uma pitada experimental ao conjunto, com texturas eletrônicas discretas que ampliam o horizonte sonoro. O set se encerra com Odara, onde elementos afro-brasileiros se misturam ao jazz urbano numa síntese que funciona perfeitamente.
João Bosco muda completamente o rumo da noite com Linha de Passe. Seu violão estabelece padrões rítmicos complexos, mas aqui reside também o problema de sua participação: há competência técnica demais e comunicação direta de menos, sendo este, dos três, o bloco de que eu menos gosto. O medley que engloba Nação, Aquarela do Brasil e O Mestre-Sala dos Mares exemplifica essa questão. A ambição de costurar três clássicos num único movimento soa mais como exercício de virtuosismo do que necessidade artística. As transições, embora tecnicamente precisas, carecem da naturalidade que caracteriza os melhores momentos do disco, com os outros dois artistas.
Então entra Ney Matogrosso, que reequilibra a temperatura emocional logo na abertura de Deixar Você. Sua voz aguda, que poderia soar exótica para ouvidos europeus, encontra aqui terreno ideal para demonstrar como técnica vocal pode ser pura expressividade. O arranjo incorpora teclados e metais que sustentam a melodia gilbertiana com firmeza, enquanto Ney adiciona camadas, sem cair no exagero.
Andar com Fé eleva o nível do espetáculo ao transformar canção em experiência quase religiosa. A força interpretativa de Ney vai além de questões técnicas e vira manifestação de algo muito mais marcante. O acompanhamento rítmico ganha densidade, criando uma pulsação que remete simultaneamente ao samba urbano e aos rituais afro-brasileiros.
A teatralidade andrógina de Ney atinge seu ponto máximo em Napoleão, onde irreverência e sofisticação musical se encontram. A letra brinca com referências históricas, políticas e sexuais, encontrando na interpretação de Ney uma ironia inteligente que questiona padrões sem vulgaridade. O arranjo evoca tanto cabaré europeu quanto samba malandro e ritmos nordestinos, criando uma síntese cultural inédita.
Folia no Matagal reúne Ney e Caetano numa explosão carnavalesca que justifica todo o percurso anterior. A união de duas vozes iconoclastas da MPB cria uma potência expressiva irresistível. A musicalidade final incorpora percussão de carnaval de rua, enquanto as vozes se entrelaçam em jogos melódicos que revelam total cumplicidade artística.
Brazil Night: Montreux ’83 é um retrato da diversidade da nossa música levada para território estrangeiro. Se João Bosco não consegue atingir a mesma carga emocional de seus companheiros, Caetano e Ney compensam plenamente, oferecendo interpretações inesquecíveis. O disco traz um momento de reunião de grandes intérpretes num show que prova que boa música dispensa legendas para emocionar.
Aumenta!: Folia no Matagal
Diminui!: —
Brazil Night: Montreux ’83
Artista: Caetano Veloso, João Bosco e Ney Matogrosso
País: Brasil
Lançamento: Julho de 1983
Gravadora: Ariola/Barclay
Estilo: MPB, Samba, Forró, Bossa Nova, Rock
Duração: 49 min.