Home FilmesCríticas Crítica | Cabeça de Nêgo (2020)

Crítica | Cabeça de Nêgo (2020)

por Michel Gutwilen
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De certa forma, a definição popular da palavra Cabeça de Nêgo, que leva o título do longa de estreia de Déo Cardoso, já é perfeita para definir sobre o que se trata sua história. Segundo o site Dicionário Informal, são “bombas semelhantes aos traques de festas juninas, porém muito mais fortes.” Ou seja, algo que aparenta ser inofensivo, confundindo-se com uma brincadeira infantil, mas, na verdade, é de grande força em potência. Ora, em todos os sentidos, esta obra cearense também uma figura análoga: a juventude. Fase da vida na qual reside uma força em potência, adormecida, mas que, com organização, conscientização política e coletividade, pode vir a ser algo muito mais sério do que aparenta. É sobre acreditar que toda uma mudança estrutural pode vir das mãos dessas pessoas.

Portanto, é curioso ver como o próprio filme do Déo segue até um fluxo narrativo que, assim como os jovens, vai se potencializando aos poucos, até chegar em uma catarse imagética e política. Não é um filme já pronto, mas que vai se construindo, tal qual seu protagonista, Saulo (Lucas Ribeiro). Ainda que o estudante já carregue toda uma raiva consigo, como vemos na cena que ele sofre racismo de um dos colegas, é ainda uma coisa meio descontrolada, impulsiva. Contudo, aos poucos, ele vai ganhando maturidade e, o principal, estratégia, através da leitura do livro sobre os Panteras Negras. Quando ele ocupa a escola, seus atos vão ficando mais planejados. Para um obra sobre espaço educacional e revolta, é fundamental que exista uma mediação justamente através da leitura. 

Neste mesmo sentido, é muito poderosa a cena em que o protagonista está na sala de aula, no escuro, lendo sobre os Panteras. A partir de uma liberdade poética por parte de Déo, um projetor exibe, na parede atrás de Saulo, os rostos de importantes figuras deste movimento. Reside aí um poder imagético desta contraposição entre Saulo e tais pessoas históricas, como se víssemos imageticamente o conhecimento adquirido pelo estudante. São figuras de inspiração que se projetam na sua mente, mas que, pela sua projeção explícita no plano fílmico, acabam gerando um impacto também no espectador (se este conhecê-las, claro).

E se há uma sensação de maturidade e conscientização através do conhecimento sendo expandido no campo mental, o mesmo pode ser dito do espaço físico daquela escola. Conforme a narrativa progride durante a ocupação solitária de Saulo, suas ações se resumem em descobrir aquele local, em sequências que são dirigidas por Déo muitas vezes até numa atmosfera de suspense, através da ameaça do vigia. Logo, a cada espaço restrito aos alunos que vai sendo descoberto (o depósito, o banheiro, a cozinha), é também mais um passo para a tomada de consciência popular, visto que aquele material está sendo divulgado na internet. Quanto mais a fundo esta investigação é feita, mais se faz visível a podridão e descaso do sistema, tanto em um sentido literal (a precariedade física, a iluminação escura, os ratos) quanto metafórico (corrupção, autoritarismo).

Deste modo, o que se segue é que, ao pautar sua narrativa em uma tomada de consciência, tanto espacial quanto mental, a obra de Déo Cardoso estabelece um pathos — identificação emocional — entre espectador e protagonista, que compartilham, simultaneamente, a novidade da descoberta. Aliás, ainda que outros colegas críticos tenham apontado a existência de um didatismo em certos momentos de Cabeça de Nêgo (que, de fato, existem, como na reunião dos professores), acredito que até havia espaço para um maior uso de citações do livro envolvendo os Panteras Negras, se a intenção era forçar este vínculo espectatorial, visto que a tomada de conhecimento, neste caso, fica restrito à Saulo. Por exemplo, isto é algo que até chega a acontecer uma única vez, quando Saulo escreve uma frase dos Panteras no quadro escolar. Inclusive, este ato é bastante representativo. Não é apenas uma tinta sendo aplicada em uma superfície sólida, mas toda uma ideologia de luta racial gravada em um espaço institucional. De mesmo modo, o “Marielle presente”, focalizado por um plano-detalhe, gravado na madeira de uma carteira, é mais uma forma de de deixar marcas de uma resistência no espaço totalitário escolar.

Lá nos primórdios da realização e teorização do cinema, o soviético Sergei Eisenstein, em um certo momento de sua carreira (O Encouraçado Potemkin, A Greve), defendeu um cinema coletivista (sem protagonista) para atingir as massas, visto que um individualismo servia mais ao cinema burguês. Só isso levaria ao pathos, segundo ele.  À bem da verdade, com o passar do tempo, fomos vendo empiricamente que este tipo de pensamento se mostrou radical demais. No entanto, se Saulo é o grande protagonista de boa parte da narrativa, no ato final, o da explosão popular, existe um tal retorno a esta teoria coletivista. Ao fim, o que as imagens de Déo se interessam por captar é precisamente aquele amontoado de alunos, que mais parecem uma entidade viva e única, agora desta vez com um uso de câmera mais livre e bruto, correspondente ao momento. 

Até por isso, faz sentido uma escolha por imagens documentais de agressões policiais ao redor do Brasil para encerrar Cabeça de Nêgo, pois é como se houvesse uma completa germinação de um ideal revolucionário, em escalada. Dos Panteras Negras americanos para a professora brasileira; da professora para um único aluno, Saulo; de Saulo para todos os seus outros colegas; e, finalmente, dos jovens do mundo fictício para os do mundo real. Quando o espectador é impactado com aquelas imagens e percebe que a luta deve continuar aqui fora, o pathos se completa.

Cabeça de Nêgo — 2020, Brasil
Direção: Déo Cardoso
Roteiro: Déo Cardoso
Elenco: Lucas Limeira, Nicoly Mota, Jennifer Joingley, Mayara Braga, Wally Menezes, Mateus Honori
Duração: 85 mins.

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