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Crítica | Cachalote (2010)

Uma graphic novel ímpar, envolta numa redoma nonsense e hermética.

por Leonardo Campos
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Algumas pessoas dizem que há limites para a interpretação. Outras defendem que há zonas que demarcam até onde podemos decifrar a significação de algo. Em diálogo com as duas perspectivas, devo dizer que diante de Cachalote, a badalada graphic novel de Rafael Coutinho e Daniel Galera, o leitor se encontra num espiral de acontecimentos surpreendentes, não necessariamente positivos em todos os seus aspectos, mas fascinantes. São momentos de espanto, afinal, a magnitude do projeto nos direciona para caminhos diversos, sensações múltiplas, indefinição perante o processo de compreensão. Será possível ter realmente compreendido todo o feixe narrativo desta história visual de traços marcantes? Essa é uma pergunta que me faço ainda hoje, mais de um mês depois da primeira leitura, pois pretendia ficar flutuando nos pensamentos em torno desta publicação que me chegou por meio da proposta de reflexão e crítica do legado e impacto cultural de Moby Dick, do escritor Herman Melville.

A leitura de Cachalote veio como parte do mapeamento de textos envolvendo o extenso desdobramento deste complexo romance do século XIX na cultura. A graphic novel apareceu como opção na lista de produtos, foi colocada no carrinho de compras e, imaginando ser mais uma das traduções intersemióticas do mencionado livro, chegou ao meu acervo. Ao conferir, no entanto, percebi que não havia tanta aproximação. Por que uma publicação com este título não possuía um laço sequer a não ser o nome e a menção ao cetáceo que ocasiona os principais conflitos do romance do escritor estadunidense? A curiosidade, neste caso, ampliou mais ainda o desejo de leitura. Em linhas gerais, a não ser que possa ter uma conversa direta com os idealizadores, não podemos afirmar que há uma conexão direta de Moby Dick com Cachalote. Ao pensar sobre, adentrei num emaranhado de dúvidas sobre estar diante de uma interpretação exagerada, aquilo que tracei no começo: os caminhos do excesso interpretativo.

O que podemos afirmar, sem hesitação, é que a baleia cachalote é tão enigmática no romance quanto na graphic novel. Ademais, são histórias sobre a inevitabilidade do destino, tramas sobre intolerância, elementos religiosos no cotidiano dos personagens e idealismo. Lançada em 2010 pela Quadrinhos e Cia, Cachalote se apresentou ao público leitor com uma capa de tons claros, criada por Elisa V. Randow, num projeto que teve parceria com a RT Features, de Rodrigo Teixeira, um nome considerável neste mercado editorial. Em seu feixe de histórias temos as trajetórias de cinco personagens, em existências que não se cruzam, conectados apenas pelos tópicos temáticos envolvendo as bagunças estabelecidas em suas vidas, figuras ficcionais repletas de expectativas, domadas pelas instabilidades de suas existências. Todos, emaranhados por uma linha nonsense que destrói qualquer ideia básica de normalidade, sem deixar de lado o lirismo e o mistério que encantam, mesmo com sua carga de estranhamento que para outros, pode repelir, afinal, esta é uma obra cifrada, sem caminhos fáceis de contemplação.

Amores, dores, indivíduos transtornados pela solidão, tópicos temáticos trabalhados por meio de um cuidadoso e denso jogo de luz e sombra, com riqueza de detalhes para narrar a caminhada do playboy Ricardo Aurélio, do astro de cinema chinês, do escultor endurecido pela vida, do homem vidrado em peculiaridades sexuais e do casal com laços estranhos. Aqui, diante de seu hermetismo, há possibilidade de conclusões. Por fim, nalguns caminhos percorridos sobre outras interpretações de Cachalote, há um artigo que relaciona as suas possíveis conexões com as ideias de Roland Barthes sobre A Morte do Autor. Em especial, destaco aqui a passagem do filósofo da linguagem que examina a unidade do texto e o destino da escrita, isto é, algo que há muito tempo deixou de ser “aquilo que o autor quis dizer” para ser o que o “leitor pode apreender e refletir sobre”. Podemos afirmar que a graphic novel é uma tradução do romance de Herman Melville? Não, seria leviano, no entanto, há possíveis ilações que permitem aos leitores do material de Daniel Galera e Rafael Coutinho, sincronizar os entendimentos em relação ao livro, numa rede interessante de literatura em processo comparativo, sem necessariamente fechar interpretações, mas propor debates.

Cachalote (Brasil, 2010)
Roteiro: Daniel Galera
Arte: Rafael Coutinho
Editora: Quadrinhos e Cia
Páginas: 32

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