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Crítica | Cadáveres Bronzeados

por Luiz Santiago
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Quem chega a Laissez Bronzer Les Cadavres sem ter nenhum conhecimento do que encontrar no trabalho de Hélène Cattet e Bruno Forzani pode levar um verdadeiro susto e ter uma discussão que já é frequente na filmografia do casal, conhecidos por suas homenagens e certa revisão (ou aproximação?) do giallo na dupla AmerA Estranha Cor das Lágrimas do seu Corpo. O debate de “forma sobre a substância” não é desconhecido para os diretores e eles estão perfeitamente cientes do caráter hiper-estilístico de seus filmes, trazendo isso à tona em muitas entrevistas e ressaltando a escolha labiríntica e visualmente embasbacante para contar (ou tentar contar) histórias simples que, no final, não parecerão tão simples assim.

O primeiro obstáculo talvez seja uma tentativa de leitura ou abstração da obra a partir de seu gênero. Em certa medida, estamos diante de um suspense que na verdade é um faroeste; um tipo bem específico de faroeste, mistura tardia de acid, neo (o filme é de 2017!) e spaghetti western, pincelando influências e criando em cima de clássicos e dissensos cinematográficos desse gênero, seja no texto, seja na imagem. A alma da proposta está fartamente aludida no próprio filme, convidando o espectador a incorporar doses fantasia e surrealismo meio místico em sua interpretação para aquilo que vê na casca do roteiro, escrito pelos diretores e baseado na obra de Jean-Patrick Manchette e Jean-Pierre Bastid.

Uma gangue coloca as mãos em uma grande quantidade de barras de ouro. Eles estão escondidos em cidade fantasma e dividem o espaço com a misteriosa artista Luce (Elina Löwensohn). As coisas começam a sair dos trilhos quando o plano a longo prazo da gangue é interrompido pela chegada de alguns visitantes indesejados, dentre eles, dois policiais. E digamos que haja um espírito no meio da história também. Como se vê, não é uma visão geral de um enredo complicado e até o elemento espiritual que o texto sugere é perfeitamente abstraído pelo espectador porque recebe um tratamento fotográfico notadamente distinto toda vez que aparece na tela. Mas é explorando essa aparente simplicidade com uma certa “bobagem sobrenatural” que Cattet e Forzani realizam uma visceral viagem de emoção, tensão, medo e pontos de vista bem diferentes em relação à passagem e aproveitamento do tempo, fazendo da história um tiroteio sincronizado e particularizado por diferentes impulsos humanos.

Quando falamos em “orquestração do tempo” no western é bem provável que a abertura de Era Uma Vez no Oeste ou a própria essência de Matar ou Morrer venham à mente do espectador, e isto está perfeitamente correto. Mas enquanto o tempo, nesses filmes, está relacionado à espera de algo, aqui em Cadáveres Bronzeados ele é utilizado em mais de uma forma, não ‘apenas’ como intensificador do drama, mas como marcador de percepção dos personagens para eventos-chave, sendo toda a trajetória marcada pela exibição da hora em que essas cenas acontecem e qual é o ponto de vista de dos atores para esses momentos. Inicialmente o recurso tem o papel de nos ajudar a mergulhar no ritmo intenso, picotado e quase ilógico da montagem — que é sensacional, pois utiliza tudo isso a seu favor –, mas pouco a pouco ele ganha um papel diferente de delimitação, cumprindo uma função narrativa que juntamente com a montagem desfila por diversos pontos da cidade fantasma e nos faz acompanhar com detalhes a reação e o destino desses pobres indivíduos.

A violência e a sujeira com que esse mundo nos é mostrado lembra o estilo Sam Peckinpah, e o recorte de faroeste urbano com resultados inesperados parece um abraço de homenagem ao grandioso Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia. O que temos aqui é um exercício estético de forte intensidade, com uma linha de ação visceral e que é capaz de nos hipnotizar. Evidente que esse apreço colossal dos autores pela estética compromete uma certa parcela o filme, na manutenção de sua frágil linha narrativa (que não bastasse ser frágil, é múltipla de simbolismos e significados, dado o fator de fantasia ou manifestação do mundo onírico ou sobrenatural). Todavia, conhecendo a proposta do cinema da dupla, esse parcial esvaziamento de sentido narrativo não é um verdadeiro problema, ao contrário, reforça o poder da imagem e faz desses cadáveres bronzeados uma experiência cinematográfica da qual é difícil tirar os olhos e se recuperar com facilidade. Um western verdadeiramente inovador.

Cadáveres Bronzeados (Laissez bronzer les cadavres) — França, Bélgica, 2017
Direção: Hélène Cattet, Bruno Forzani
Roteiro: Hélène Cattet, Bruno Forzani (baseado na obra de Jean-Patrick Manchette e Jean-Pierre Bastid).
Elenco: Elina Löwensohn, Stéphane Ferrara, Bernie Bonvoisin, Michelangelo Marchese, Marc Barbé, Marine Sainsily, Hervé Sogne, Pierre Nisse, Aline Stevens, Dorylia Calmel, Marilyn Jess
Duração: 92 min.

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