Home LiteraturaContoCrítica | Cadernos Negros – Volume 32 (Organizadores: Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa)

Crítica | Cadernos Negros – Volume 32 (Organizadores: Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa)

Uma seleção de contos sobre temáticas cotidianas afro-brasileiras.

por Leonardo Campos
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O volume 32 dos Cadernos Negros, uma antologia de contos publicada em 2009, é atualmente parte do currículo do vestibular da Universidade Estadual da Bahia. Organizada por Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, a coletânea é uma homenagem aos guerreiros-ancestrais, destacando figuras como Jônatas Conceição Oliveira Silveira, Antonio Luís Alves de Souza (o Neguinho do Samba do Olodum) e Mãe Hilda, do Ilê Aiyê. Na apresentação, os organizadores enfatizam que os Cadernos são um projeto coletivo que se renova anualmente, mantendo vivo o espaço de atualização de ideias, desejos, esperanças e emoções. Eles expressam a dor da perda de companheiros e militantes que contribuíram para essas páginas da literatura afro-brasileira. Ao iluminar as experiências de racismo estrutural, recreativo, a intolerância religiosa e a vivência interseccional, a coletânea não apenas enriquece o entendimento sobre as lutas enfrentadas por mulheres afro-brasileiras, mas também inspira a construção de um mundo mais justo e inclusivo.

Apesar da existência da série por mais de três décadas e de ter conquistado um espaço significativo, ainda se sente a urgência de começar do zero a cada edição. Embora tenha havido avanços, como a inclusão dos Cadernos Negros em bibliotecas escolares, os organizadores reforçam que a adesão dos professores é essencial para que os livros ganhem vida nas mãos dos alunos, pois a trajetória do povo afro-brasileiro enfrenta um constante movimento de resistência dentro da sociedade, onde cada conquista é frequentemente seguida de reações adversas. Portanto, é fundamental que se adote uma postura de luta e crença nos sonhos, trabalhando juntos para transformar desejos em realidade e assegurar que a literatura afro-brasileira não apenas exista, mas floresça na imaginação e na cultura dos novos leitores.

Para os organizadores do volume 32 dos Cadernos Negros, a entrega anual de um livro que reflita as experiências do Brasil contemporâneo é uma experiência inestimável, pois permite atualizar memórias e apresentar narrativas tanto para novas gerações quanto para as mais velhas. Apesar dos desafios enfrentados, especialmente aqueles provenientes de entidades que deveriam oferecer apoio, os organizadores permanecem firmes em sua missão de “navegar nesse mar de palavras”. Eles afirmam que o valor reside na jornada e nas possibilidades de transformação e amor que esse projeto promove, destacando a relevância de materializar seu amor por meio da literatura. Este volume, como os anteriores, apresenta contos conectados por temas comuns que têm o potencial de emocionar profundamente os leitores.

Além de apresentar uma gama de emoções, o volume 32 é notável por seu tom mais otimista, abrangendo temas de dor, sofrimento, superação e descoberta, bem como o necessário sentimento de esperança, algo buscado cotidianamente para lidar com as agruras de uma sociedade que ainda precisa lidar com o preconceito. Outro aspecto a destacar é o aumento da presença feminina entre os autores, refletindo uma proporção maior de vozes femininas em comparação a edições anteriores. Essa diversidade traz uma nova perspectiva e enriquece as narrativas da antologia, reafirmando o importante papel das mulheres na literatura afro-brasileira. Assim, esse volume se destaca não apenas pela sua riqueza temática, mas também pela sua capacidade de inspirar e ressoar com o público em uma busca contínua por identidades e histórias que refletem experiências coletivas.

Ao contemplarmos a coletânea, percebemos como a literatura é uma poderosa ferramenta de resistência e conscientização, uma característica amplamente evidenciada neste volume, antologia não apenas dá voz a escritores afro-brasileiros, mas também propõe uma reflexão profunda sobre as múltiplas formas de opressão enfrentadas pelas mulheres afrodescendentes no Brasil contemporâneo. Neste volume, os contos abordam temas urgentes como o racismo estrutural, o racismo recreativo, a intolerância religiosa e a vivência interseccional, revelando as complexidades e os desafios que permeiam as vidas das tantas mulheres afro-brasileiras.

O racismo estrutural, um dos temas centrais da coletânea, se refere à maneira como as instituições sociais, políticas e econômicas perpetuam a desigualdade racial de forma sistemática. Os contos presentes refletem narrativas em que as protagonistas afro-brasileiras enfrentam discriminação e exclusão em diversos âmbitos, desde o mercado de trabalho até as relações interpessoais. Através dessas histórias, os autores expõem como as barreiras impostas pelo racismo estão profundamente enraizadas na sociedade, criando uma luta constante por reconhecimento e justiça.

Um exemplo notável é o conto que narra a experiência de um personagem buscando emprego em uma empresa respeitada. Apesar de suas qualificações, a figura ficcional em questão se depara com questionamentos e olhares desconfiados por parte dos entrevistadores, que revelam um preconceito enraizado que vai além da capacidade individual, refletindo uma cultura empresarial marcada pelo racismo. Esse relato, como outros na coletânea, ilustra a necessidade de desconstrução das narrativas viciadas que ainda permeiam a sociedade brasileira.

Além do racismo estrutural, a coletânea também aborda o racismo recreativo, uma forma de discriminação que, muitas vezes, é mascarada sob o véu do humor ou da sociabilidade. Os contos exploram como esse tipo de racismo se manifesta em interações cotidianas, revelando a banalização da dor e do sofrimento das pessoas negras. Uma história particularmente impactante mostra uma personagem que, em uma roda de amigos, é alvo de piadas racistas que, à primeira vista, podem parecer inofensivas. No entanto, essas “brincadeiras” sutilmente reforçam estereótipos prejudiciais e perpetuam um ambiente hostil, exibindo a crueldade velada que muitas mulheres negras enfrentam em sua vida social.

A intolerância religiosa também é um tema primordial nesta coletânea. Contos que refletem a prática de religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, revelam os desafios cotidianos enfrentados por mulheres que se mantêm firmes em suas crenças num contexto em que a intolerância religiosa é uma realidade. Ademais, a coletânea também enfatiza a importância da vivência interseccional das mulheres afro-brasileiras. Isso significa que a opressão não se dá apenas por ser mulher ou por ser negra, mas pela intersecção de múltiplas identidades que contribuem para uma experiência única de discriminação e resistência. Os contos revelam como questões de classe, gênero e raça se entrelaçam, intensificando as dificuldades que essas mulheres enfrentam no cotidiano.

Em linhas gerais, no conjunto de Cadernos Negros: Volume 32, cada conto é uma janela para a realidade dessas mulheres, oferecendo uma rara oportunidade para o leitor entender a complexidade de suas vivências. Os autores não apenas desnudam a dor e a luta, mas também celebram a resistência, a força e a resiliência dessas mulheres. O livro se transforma, assim, em um manifesto que clama por mudança, convidando à reflexão e à ação contra as injustiças que ainda persistem no Brasil. Os contos não só servem como um chamado à empatia, mas também como um desafio à sociedade a reconhecer e confrontar suas próprias práticas e crenças prejudiciais. A coletânea, por meio de suas narrativas profundas e impactantes, mostra que as vozes das mulheres afro-brasileiras são fundamentais na luta por equidade e justiça. Cada história carrega não apenas a dor das injustiças enfrentadas, mas também a esperança de um futuro mais justo e igualitário.

Todos os contos possuem o seu valor e importância na discussão dos temas mencionados ao longo desta reflexão, mas de todos, o que mais se destacou em minha leitura foi Cauterização, de Cristiane Sobral, tanto pela sua discussão abrangente quanto por seu desenvolvimento curioso e surpreendente, tudo isso no bojo de uma escrita simples, mas incisiva.  O conto explora a busca incessante da protagonista por um ideal de beleza que se distancia de sua identidade negra. Para isso, ela se submete a rituais de embranquecimento, utilizando protetor solar fator 100, base facial e outros artifícios na tentativa de esconder seu biotipo. O foco de seus sonhos e aspirações é casar-se com um homem de pele clara e gerar um filho que se encaixe nos padrões de beleza eurocêntricos, que para ela se resumem a características como nariz afilado e olhos claros. Essa busca por conformidade estética tem raízes na inocência da infância, onde a interação com bonecas loiras já iniciava um processo de idealização e aspiração por um padrão que a sociedade considera desejável e feliz.

O conto revela, assim, o impacto negativo desse desejo de se moldar a um ideal de beleza eurocêntrico, que leva Socorro a uma profunda aversão por sua própria identidade. A cor da sua pele passa a ser vista como uma “mancha”, um símbolo de inferioridade que ela deseja apagar. Esse fetiche pela brancura resulta em uma destruição gradual de sua autoestima e de sua individualidade, levando-a a adotar medidas extremas para se transformar em “algo” que não é. A narrativa aborda a violência que essa busca inflige sobre si mesma, refletindo uma internalização dos valores sociais que valorizam a branquitude em detrimento da diversidade racial. Assim, Socorro não apenas anseia por ser aceita, mas também por invisibilizar sua essência, refletindo uma crítica aguda à sociedade que perpetua esses padrões discriminatórios.

A personagem Socorro é apresentada como um reflexo de conflitos internos e anseios que a movem em busca de uma identidade idealizada. Ao longo do conto Cauterização, ela gradualmente assume a crença nos “mitos negro e branco”, aspirando a uma transmutação física e psíquica que a levaria à aceitação social. No entanto, mesmo após adotar diversas estratégias para disfarçar seus fenótipos negros, ela se depara com uma realidade cruel durante um incidente de trânsito, onde é chamada de “negona”. Essa ofensa fere profundamente sua autoimagem, revelando a internalização dos estigmas associados à sua negritude e a repulsa que sente por suas origens. A provocação a leva a uma explosão emocional que culmina em uma epifania, onde as máscaras de conformidade com a branquitude começam a se estilhaçar, forçando-a a confrontar sua verdadeira identidade.

A transformação de Socorro é representativa de um processo de autoconhecimento que se desvela em um momento revelador sob a chuva, ao cortar seus cabelos alisados e se libertar das imposições sociais que a aprisionavam. Esse ato simbólico não apenas a renova, mas também a liberta da pressão de se conformar a um ideal que nunca conseguiu alcançar. A personagem percebe que a aceitação de sua negritude não é uma traição, mas um resgate da própria essência e da beleza que reside em sua identidade. À medida que corta os cabelos, ela se sente mais bonita, serena e consciente, vivendo um renascimento emocional e físico. Essa transição reflete a luta interna de Socorro e a redescoberta de si mesma, desmantelando o fetichismo da brancura e revelando a força e a beleza de sua verdadeira identidade. A narrativa assim se torna um poderoso testemunho da busca de aceitação e amor-próprio no contexto de uma sociedade que valoriza a branquitude em detrimento da diversidade.

Outra narrativa que também me identifiquei ao longo da leitura é o conto Entrevista de Emprego, escrito por Valdomiro Martins, narrativa retrata a jornada de um jovem em busca de uma oportunidade profissional em uma grande rede de televisão. A narrativa foca na preparação e nas expectativas do personagem, evidenciando sua dedicação e esperança ao enfrentar um momento crucial em sua vida. Faz parte de uma coleção que destaca a produção literária de autores afro-brasileiros, abordando temas centrais como identidade cultural e relações raciais, o que acrescenta uma dimensão de representatividade à história. O conto se destaca por sua abordagem sensível e realista sobre a busca por oportunidades, especialmente em um cenário onde a representatividade afro-brasileira é fundamental. Entrevista de Emprego não apenas narra a experiência individual do protagonista, mas também levanta reflexões sobre a importância da preparação, da persistência e da esperança na realização dos sonhos, temas que ressoam profundamente com jovens e adultos em situações semelhantes. A obra contribui para a discussão sobre a desigualdade e as dificuldades enfrentadas por indivíduos em busca de espaço no mercado de trabalho, incentivando o diálogo sobre questões pertinentes à identidade e à luta por oportunidades igualitárias na sociedade.

Há outros contos igualmente relevantes, mas como literatura é arte e, desta maneira, algo muito subjetivo, estes foram os que mais me tocaram.

Cadernos Negros Vol. 32 (Brasil, 2009)
Autor: Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa (org.)
Editora: Quilombhoje
Páginas: 160

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