Home LiteraturaCrítica | Café da Manhã Dos Campeões, de Kurt Vonnegut

Crítica | Café da Manhã Dos Campeões, de Kurt Vonnegut

Um retrato mordaz dos EUA.

por Ritter Fan
0 views

Meu primeiro e, até pouco tempo atrás, único contato direto com Kurt Vonnegut foi por intermédio de seu Matadouro 5, obra-prima antibelicista que eu li praticamente de boca aberta o tempo todo em função de seu absolutamente insano estilo narrativo. Não sei bem o porquê, demorei anos para mergulhar em outro de seus livros, escolhendo sua obra seguinte e talvez ainda mais famosa Café da Manhã dos Campeões, slogan da General Mills que o autor, em seu prefácio, faz questão de dizer que é marca registrada deles e que seu uso como título do livro não tem conexão alguma a fabricante de produtos alimentícios e que ele também não teve intenção alguma de “depreciar seus excelentes produtos”. Claro, nenhuma intenção… Isso nem me passaria pela cabeça…

Afinal, o livro não é uma sensacionalmente satírica, irônica, sarcástica e mordaz condenação dos EUA em especial e do capitalismo com um todo de que a General Mills, claro, faz parte, mudando hábitos alimentares com uma frase para vender mais panquecas e outros produtos, apenas um exemplo de tantos outros nessa exata linha. E o livro também não é um tapa na cara em todo um estilo de vida que era mais típico e exclusivo dos americanos nas décadas de 60 e 70 do que hoje em dia, infelizmente, em que o consumo é a força impulsionadora para tudo, um verdadeiro mantra que coroa a futilidade como objetivo de vida, com o preenchimento de vazios existenciais por produtos das mais variadas naturezas, de alimentos e roupas, passando por carros e roupas em um frenesi autodestrutivo e que se retroalimenta.

Mas Vonnegut faz tudo isso de um jeito tão excêntrico (só para não repetir “insano”) e tão magnético que mesmo que alguém se reconheça como alvo em sua obra, vestindo a famosa carapuça, esse reconhecimento será provavelmente apreciado. Ele escreve conversando com o leitor e, mais ainda em Café da Manhã dos Campeões do que em Matadouro 5, usando de seu magnificamente irritante (sim, essa incongruência é real) expediente de citar algo, normalmente coisas prosaicas, do cotidiano, e parar completamente sua história para explicar o que é esse algo, como quando, em determinada altura, ele menciona uma ambulância e parte para, então, definir ambulância, algo que ele amplifica por intermédio de desenhos simples – diria até mesmo pueris – dele mesmo inseridos ao longo de todo o livro, com mais constância do que em seu anterior, que foi o primeiro em que ele empregou essa sua “técnica”.

A história é mais uma desculpa para Vonnegut destilar seu delicioso veneno, mas, mesmo assim, ela funciona muito bem diante de sua enganosa simplicidade e que o autor descreve já em seu primeiro parágrafo depois do prefácio em minha tradução direta já que não tenho o livro em português: “Esta é a história do encontro de dois homens brancos, solitários, magros e já de certa idade, num planeta que estava morrendo rapidamente”. Quase a totalidade da narrativa lida com os eventos que levam ao referido encontro, com o encontro em si e suas consequências sendo abordados quase no final apenas. Mas que homens são esses? Um deles é Kilgore Trout, personagem repetidamente usado por Vonnegut das mais diferentes maneiras, que é um autor de ficção científica muito publicado, mas pouco conhecido (e também seu alter ego) e o outro é Dwayne Hoover, um vendedor de automóveis. O “planeta que estava morrendo rapidamente”, claro, é o nosso planeta aqui mesmo que continua exatamente no mesmo processo, só que em passo mais acelerado. Trout recebe um inesperado convite para participar do festival de arte de Midland City, em Ohio e parte em uma road trip até lá, enquanto que Hoover é um notório habitante dessa referida cidade.

Apesar de o melhor caminho entre dois pontos ser normalmente a linha reta, Vonnegut não gosta nem um pouco delas e prefere traçar as jornadas mais tortuosas possíveis, não só oscilando entre os dois personagens completamente ignorantes um do outro, como também adicionando diversos outros que gravitam, de uma forma ou de outra, ao seu redor, isso sem contar com os desvios narrativos que não perdoam nada e ninguém, começando pelo hino dos EUA e seguindo em frente com cáusticos comentários sobre a escravidão e como a situação do século anterior mal mudou depois de todo esse tempo, dentre uma riqueza de outros que pinta um quadro que até pode ser colorido e exótico, mas que é perfeitamente reconhecível mesmo décadas depois do lançamento do livro. Assim como em Matadouro 5, o narrador onisciente em terceira pessoa por vezes interfere na história, tornando-se um personagem, com sua presença tornando-se cada vez mais evidente na medida em que a história é contada e particularmente em seu final em que ele assume uma posição que converte Café da Manha dos Campeões em ficção científica, ainda que o livro não seja nem de longe “só” ficção científica.

A grande verdade é que Café da Manhã dos Campeões desafia classificações, até porque, muito sinceramente, para que classificar um livro como desse ou daquele gênero, não é mesmo? O que realmente importa é seu conteúdo e como o autor o transmite. A verve satírica de Kurt Vonnegut é inconfundível e cativante, com textos que parecem simples e até mesmo por vezes crus, mas que, no conjunto, oferecem uma visão sólida, lúcida e abertamente condenatória de um país e do estilo de vida de seus habitantes que continua válida até os dias de hoje e, em diversos aspectos, aplicável a diversos outros países “contaminados” pelo american way of life. Realmente, a General Mills pode ficar tranquila que o livro que tem como título seu famoso slogan não é de forma alguma depreciativo do que a empresa representa…

Café da Manhã Dos Campeões (Breakfast of Champions – EUA, 1973)
Autoria: Kurt Vonnegut
Editora original: Delacorte Press
Data original de publicação: 12 de julho de 1973
Editora no Brasil: Editora Intrínseca
Data de publicação no Brasil: 11 de novembro de 2019
Tradução: André Czarnobai
Páginas: 400

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais