Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Cais das Sombras

Crítica | Cais das Sombras

Num diálogo com o noir, Carné cria uma obra romântica sobre o pessimismo e pessimista sobre um romance.

por César Barzine
283 views

O andarilho à beira da estrada que pega carona com um caminhoneiro desconhecido é o primeiro sinal de pura amargura que há em cada instante e componente de Cais das Sombras. Esta produção de Marcel Carné é daquelas que abraça a tristeza por completa, destilando sem parar a melancolia na atmosfera do filme e toda uma perdição na composição dos personagens. A história é a de um casal cuja principal marca é essa angústia, e, através de um desenvolvimento circular, faz com que todo o percurso deles gire em torno disso: o momento antes de se conhecerem, o início da relação, a consolidação da paixão e o desfecho dela – que finaliza seu arco da única maneira possível: com ainda mais angústia e perdição.

Jean, um desertor do exército, conhece Zabel em condições aleatórias numa modesta casa de um conhecido em comum. A união dos dois não possui maiores contextualizações, e Jean já deixa claro sua atração por ela, o que, sem um extenso desenvolvimento, logo se torna um caso amoroso entre eles. Ambos evidenciam em vários momentos o principal ponto de compartilham: a falta de perspectiva para com a vida, de se sentirem isolados e carentes. E é aqui que fica nítida a escola cinematográfica a qual Cais das Sombras pertence, que é o Realismo Poético Francês. A questão do realismo se dá por um aspecto psicológico que se cruza com a condição externa em que os personagens se encontram. Os dois não se sentem inseridos na sociedade, estão de alguma forma deslocados, mas não por serem marginais (embora Jean seja um desertor) ou indigentes, e sim por simplesmente não terem algo a se apegar (família, casa ou trabalho).

Já o viés poético está no formato com que esse realismo se concretiza, que é através do romantismo e do subjetivismo. Apesar da frieza que  existe nos personagens, não há frieza no olhar de Carné; sua abordagem é enfática e sentimental, o que transparece de maneira sublime toda a dureza que os personagens enfrentam. Temos, assim, a união de realismo e poesia que colocam o longa dentro de seu movimento cinematográfico. Porém, mais do que isso, Cais das Sombras abre diálogo com outro campo do cinema, que é o filme noir

Evidentemente, não dá para encaixá-lo nessa categoria, pois o noir é um subgênero americano que só viria a existir alguns poucos anos depois. Mas as semelhanças entre essa produção francesa e tal estilo são evidentes, e podem ser vistas tanto no enredo quanto na estética de Cais das Sombras. A história envolve conflitos do casal com um gangster que faz com que o filme flerte com o suspense em seu ato final, levando a situações exaltantes dignas de qualquer thriller. Além disso, o vazio e a amargura dos personagens é outra forte característica compartilhada com o noir, em que o extremo pessimismo é um dos pontos chaves. Por fim, a fotografia e a atmosfera soturna são outros locais de encontro. Cais das Sombras é um trabalho em que a noite é uma peça essencial, predominando um clima de quase sempre aflição e com planos que possuem o típico jogo de luzes e sombras tão presentes no noir – e aqui, um plano que contrasta as faces de Jean e Zabel em seus momentos finais é o mais belo exemplo dessa tendência.

Mas não só de tristeza vive o casal, ao passo que o romance se desenvolve, Zabel descobre a felicidade e toma Jean como o porto seguro da qual ela tanto necessitava. Uma lindíssima sequência no final do segundo ato demonstra isso de maneira vibrante, o casal está presente num quarto de hotel e, através de closes entre planos e contraplanos, a beleza de Zabel é capturada desta vez de modo claro, e ela, expressa de forma radiante a alegria em que se encontra. Zabel afirma que na noite anterior Jean disse que ele a amava; ele, mais frio do que a moça, alega que ela deveria ter sonhado. A jovem rebate e pergunta se seu parceiro também sonhou. “Eu não sonho’’, diz ele; “todo mundo sonha’’, reage ela. Apesar de Zabel se entregar à paixão, Jean não faz o mesmo; e as interpretações opostas de ambos exprimem isso. 

Logo em seguida, o protagonista olha o exterior do hotel pela janela, e um contraplano apresenta o navio do qual ele irá viajar para a Venezuela sem sua amada. É reforçado o futuro desligamento do casal, e percebemos mais uma vez que a angústia é o único caminho para aqueles dois personagens. A história do longa ganha um caráter fatalista: tudo já está determinado, e a infelicidade é intrínseca à existência daquelas pessoas. O filme em instantes retorna ao seu clima melancólico e, pouco depois, a mera contemplação da tristeza chega em seu estágio trágico, fazendo com que o fatalismo se consolide de vez naquele desfecho – o que é antecipado por uma trilha sonora com ares etéreos, como se Jean estivesse caminhando para a morte. Neste final, o mesmo cachorro que havia aparecido na primeira sequência de Cais das Sombras e acompanhado Jean ao longo de sua jornada reaparece. Ele é o símbolo da circularidade desta narrativa, o que, ao lado do navio prestes a partir, de Zabel caindo em desgraça e da neblina reinante naquele ambiente, demonstra mais uma vez a tristeza como um caminho inevitável naquele mundo.

Cais das Sombras (Le Quai des Brumes, França, 1938)
Direção: Marcel Carné
Roteiro: Jacques Prévert (roteiro), Pierre Dumarchais (romance)
Elenco: Jean Gabin, Michel Simon, Michèle Morgan, Pierre Brasseur, Édouard Delmont, Raymond Aimos, Robert Le Vigan, René Génin, Marcel Pérès, Jenny Burnay, Roger Legris, Martial Rèbe
Duração: 91 minutos.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais