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Crítica | Calafrios (1975)

por Leonardo Campos
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A sexualidade é um campo polêmico quando discutido em qualquer seara da nossa vida cotidiana. Com teorias estabelecidas e largamente questionadas ao passo que a humanidade avançava durante o turbulento século XX, o tema se tornou pulsante após a Segunda Grande Guerra Mundial, depois gritante (mas ainda pulsante), em especial, nos anos 1970, uma das eras mais interessantes para uma análise histórica do cinema. Movimentos sociais e políticos clamavam por mudanças urgentes e as narrativas cinematográficas não deixaram de expressar as celeumas que ocorriam na seara da realidade, numa mescla de entretenimento e sessão de psicanálise entre quem produzia e consumia filmes durante toda a década que nos apresentou David Cronenberg. Em 1975, o cineasta estreou nos circuitos de exibição comercial com Calafrios, prévia do que viria em Enraivecida na Fúria do Sexo, Filhos do Medo, Videodrome – Síndrome do Vídeo, A Mosca e tantos outros clássicos modernos do horror. O sexo urrava nos slashers iniciais, nos musicais de John Travolta, bem como nas comédias e nos dramas. Era um tópico importante, apresentado como perigoso, algo reforçado na virada da década com o advento da AIDS e os seus pormenores sociais que surgiram com as novas inseguranças, monstros novos que a população precisava enfrentar para sobreviver e se reinventar.

Dirigido por David Cronenberg em 1975, tendo como base o roteiro de própria autoria, Calafrios nos apresenta um olhar ousado sobre as dimensões que o corpo humano atingiu diante das inovações tecnológicas, um tema que será dominante durante bastante tempo na carreira do cineasta, tópico que divide espaço com a constante questão da identidade. Ele estabelece como base para o seu cinema, uma mescla de entretenimento subversivo com crítica social que esbanja camadas generosas de filosofia. Assim, atende ao público que busca a o escapismo que a sétima arte pode fornecer, algo que vem embasado por importantes conceitos e teorias das humanidades, conectadas com os conflitos dos personagens e pontos nevrálgicos estabelecidos por suas tramas. Dentre as tantas perguntas levantadas, nem todas respondidas de maneira óbvia, o que mais chama a atenção é a nossa relação dentro de uma sociedade que reprime os nossos desejos mais profundos, contenção que Freud, salvaguardadas as devidas proporções contextuais, já discutia em seu “clássico” O Mal-Estar da Civilização. No bojo dos anos 1970, era de extremas inseguranças e histerias coletivas, as ânsias individuais latejavam e faziam pulsar o tecido social costurado por grupos mergulhados no caos e na instabilidade.

No começo da produção, somos apresentados ao Condomínio Starline, um paraíso em terras canadenses. Os seus edifícios são luxuosos, com apartamentos que permitem aos moradores sonhar com a tranquilidade e a paz diante do conforto ofertado neste empreendimento “selecionado”. Inserido numa ilha que permite o distanciamento dos intensos barulhos urbanos do cotidiano agitado de Toronto, uma metrópole em constante desenvolvimento, como qualquer local do planeta que sedia uma civilização tão agitada e inquieta, o local também possui shopping, supermercados, aparelhos eletrônicos de última geração, quadras poliesportivas, clínicas medicas com atendimentos especializados, dentre outros recursos. Quem não deseja viver tamanho “canadense way of life“? Diante de oferta tão grandiosa, os novos moradores sequer imaginam que o lugar será uma espécie de laboratórios para experimentos que mudarão para sempre a vida de todos. A estranheza começa quando contemplamos a morte de uma garota, alguém que saberemos mais tarde se tratar de uma garota de programa. Ela é parte de um experimento do Dr. Emmil Hobbes (Fred Doederleim), médico que investigava a ação de um parasita na reparação de órgãos danificados por problemas de saúde diversos.

A ideia inicial é que o hospedeiro, ao ser introduzido no corpo humano, resolva as questões que danificam a estrutura interna, mas também saberemos que o tal médico banca o cientista alucinado e na verdade o seu experimento é uma absurda e antiética pesquisa com um parasita que aumenta a libido dos infectados e os transforma em assustadores “zumbis” sedentos por atos sexuais, em qualquer lugar e momento, em dupla, trio ou coletivamente. É a exposição dos desejos reprimidos comentados anteriormente. Diante do exposto, não é novidade que o filme exibirá uma verdadeira festa da carne, com pessoas sendo atacadas pelos corredores, elevadores, dentro de seus apartamento supostamente seguros, etc. Para o médico que apertou o botão de inicialização do caos, a humanidade chegou a um ponto de reflexão demasiada, contenção de seus instintos mais primitivos, algo enaltecido com seu parasita que leva as pessoas a perversão total, distanciada do autocontrole que as regula. Para os desavisados ou quem de fato não mergulhou nas reflexões de Calafrios, a produção pode se apresentar como uma louca história de terror sobre um parasita que se assemelha as nossas fezes e ataca aleatoriamente as pessoas dentro de um espaço geográfico limitado.

Cronenberg vai muito além do terror físico em sua primeira incursão cinematográfica e nos deixa tensos diante do caos que reflete algo que pode parecer tão ficcional e distante da realidade, mas ao mesmo tempo, possível. Quem imaginaria que em 2020, viveríamos uma pandemia de tamanha extensão? Isso tudo era só probabilidade e discurso sensacionalista de documentários da National Geographic e do Discorevy Channel. Agora é mais real do que nunca. Apresentada de maneira visceral, a perda do controle ganha dimensões externas ao espaço inicial, isto é, o Condomínio Starline, com os seus moradores infectados dentro de automóveis que partem para o centro da cidade na provável busca de contaminação de outras pessoas. É um encerramento narrativo fora do convencional, muito comum ao que se fazia na época, mas que os canadenses ainda não estavam tão habituados. O resultado foi a rejeição interna ao filme, contemplados em festivais e ovacionado pelo público estrangeiro. Ao chocar as plateias com uma trama que abandona os castelos e mansão assombradas distantes da civilização, Calafrios traz o horror para a cena urbana, em especial, no interior de um condomínio que deveria refletir a intimidade e a tranquilidade de seus moradores.

O público canadense não estava tão acostumado com a acidez de discursos deste tipo, mas David Cronenberg entrega o seu primeiro ensaio, base para o horror cada vez mais crescente em suas narrativas posteriores, igualmente destrutivas quando o assunto é o corpo em transformações físicas e alegóricas. Importante que mesmo com algum destaque para um grupo de personagens, a experiência dramática em Calafrios é algo mais amplo, sem buscar exatamente uma linha de coadjuvantes e protagonistas. Há um tempo maior em cena para o médico residente Roger St Luc (Paul Hampton) e sua companheira Forysthi (Lynn Lowry), dupla que vai correr para conseguir se manter a salvo diante do ataque generalizado que lembra muito o vírus de Extermínio e a dimensão coletiva da contaminação das traduções intersemióticas do romance Invasores de Corpos, de Jack Finney. Eles protagonizam algumas cenas com diálogos expositivos que nos ajudam a entender que ao ter sido uma espécie de “paciente zero” do hospedeiro, a prostituta que atendia aos demais clientes do condomínio passou a contaminar os demais, num fluxo que dá um estudo bem interessante para uma abordagem filosófica da parasitologia.

Para apresentar ao público o seu conto de horror sobre pessoas inseridas num contexto social de identidades tensionadas, com os instintos reprimidos pelas forças de ordem social em busca da conformidade para assim, evitar a trepidação da ordem, o cineasta contou com uma equipe técnica eficiente, mas ainda voltada para os ensaios audiovisuais de um cineasta que experimentava a forma e iria adquirir mais potencial, e, consequentemente, maiores orçamentos adiante. Mais adiante, Cronenberg consegue estabelecer em seus filmes uma estética própria de seu universo, algo “autoral”, indo além da vertiginosa abordagem temática em produções que se apresentaram como exercícios sofisticados de manipulação da linguagem cinematográfica. Assistir aos filmes do cineasta se tornou algo como um “evento”, bom ou ruim, satisfatório ou insatisfatório, sempre polêmico, nunca ameno. O mergulho numa experiência única para os envolvidos na construção da narrativa e também em seu público consumidor que pode até apontar alguma oscilação ao longo de quase várias décadas de realizações, mas dificilmente passará indiferente diante de um “Cronenberg”.

A direção de fotografia de Robert Saad é contemplativa ao passear pelos espaços nos primeiros momentos de apresentação do local supostamente idílico, mas também sabe fechar os seus quadros quando a tensão aumenta a ponto de se tornar insuportável, principalmente nas passagens que envolvem a perseguição em corredores estreitos, tomados por pessoas transformadas em predadores sexuais em catarse coletiva. A câmera procura sempre ser explícita nas cenas de horror físico, nos deixando angustiados diante da dor dos corpos dilacerados, da escatologia do parasita asqueroso. A edição de Patrick Dodd também trabalha certo ao permitir que o filme tenha um ritmo dinâmico, entrecortados por cenas tomada pelo caos retumbante. Danny Goldberg assina o design de som e proporciona maior impacto em passagens que poderiam passar com menor intensidade, caso a trilha sonora subisse demais ou algum movimento bem específico fosse eclipsado pelas elipses narrativas. Do rastejar ao ranger de pessoas e objetos, o som em Calafrios funciona em prol da maior dimensão física e psicológica dos acontecimentos que nos são apresentados. Ainda no quesito estético, o parasita que nos provoca asco foi produzido por Joe Blasco, supervisor de maquiagem.

É um monstrinho bem desagradável que ataca os personagens que circulam nos cenários dirigidos artisticamente por Erla Gliserman, responsável pelo tom “família” das salas e quartos do condomínio que se transformam num “antro de perdição”. Ademais, impossível não assistir Calafrios e deixar de fazer associações, caso o espectador conheça, com as considerações de Michel Foucault sobre a sexualidade. São questões que também permeiam o senso comum, mas que ganham expressividade quando discutidas com maior densidade no terreno filosófico propiciado pelos diversos estudos publicados ao longo de sua agitada vida acadêmica. Mesmo com todo o seu hermetismo que poderia sugerir uma reflexão apenas no bojo dos feudos acadêmicos e, consequentemente, uma associação forçada no corpo de uma crítica cinematográfica, Foucault trata do sexo como mecanismo de controle para o funcionamento da sociedade, dentro de concepções rígidas gerenciadas pelos grupos dominantes. É uma questão de poder. Em seu filme, David Cronenberg nos apresenta um grupo que se perde dentro dos padrões que engendram sua respectiva microfísica cotidiana. E nesta catarse coletiva, promove “calafrios” em quem representa o estabelecimento das regras normalizantes. Puro horror!

Calafrios (Shivers) — Canadá, 1975
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Paul Hampton, Joe Silver, Lynn Lowry, Allan Kolman, Susan Petrie, Barbara Steele, Ronald Mlodzik, Barry Baldaro, Camil Ducharme, Hanka Posnanska, Wally Martin, Vlasta Vrana
Duração: 100 min.

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