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Crítica | Cálculo Mortal

por Leonardo Campos
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Quando um filme é lançado e tem diante de si, a sombra de Alfred Hitchcock, cineasta considerado o maior mestre do suspense de toda a história do cinema, realizador de obras-primas inesquecíveis e constantemente imitadas, um fio de tensão é estabelecido, colocando-o à prova. Foi por meio dos laços comparativos com Festim Diabólico que Cálculo Mortal, lançado em 2002, chegou ao público. Dirigido pelo alemão Barbet Schroeder, cineasta que teve como direcionamento, o roteiro de Tony Gayton, a produção traz paralelo com o clássico de Hitchcock por conta da história verídica que teria inspirado ambos, isto é, o famoso caso dos assassinos Richard Loeb e Nathan Leopold, jovens estudantes da Universidade de Chicago que numa determinada ocasião, mataram friamente o adolescente Bobby Franks, de 14 anos, em 1924.

A motivação do crime? Simples, eles alegaram ter a intenção de realizar o crime perfeito. Em Festim Diabólico, Alfred Hitchcock apresenta uma montagem criativa e pouco comum, um jogo psicológico tenso que flerta com as possibilidades narrativas do confinamento. Em Cálculo Mortal, Sandra Bullock surge como o chamariz para o público, ao interpretar uma protagonista cheia de conflitos psicológicos e transtornos oriundos de seu passado obscuro, revelado em camadas ao passo que o filme avança. Enquanto o clássico investe na abordagem filosófica e na experimentação estética, a versão mais contemporânea do crime aposta no drama com pequenas doses de suspense e de filme investigativo, fórmula desgastada na produção estadunidense, mas que sempre atrai um determinado nicho de espectadores.

Antes de avançar na análise de Cálculo Mortal, creio que seja válido entender a melhor a história que inspirou ambas as produções. Conforme registros históricos, Loeb e Leopold pegaram prisão perpétua por conta do crime. Durante a investigação, a polícia encontrou uma carta de Leopold para Loeb, contando detalhadamente a sua interpretação para o que Nietzsche chamou de “super-homem”, “uma virtude de certas qualidades superiores inerentes a ele (o super-homem), isento das leis comuns que regem os homens”. Em suma, a dupla cometeu o crime por “ócio”, tendo em vista observar as implicações do ato hediondo. A proposta criminosa pretendia também debater sobre a polêmica filosófica acerca da superioridade de determinados seres humanos sobre outros, uma reflexão teórica levada para o terreno prático pela dupla de jovens criminosos.

Demarcado em 1924, o caso foi inspiração para diversas produções ficcionais: a peça Rope, de Patrick Hamilton, material dramatúrgico que inspirou o filme homônimo de Alfred Hitchcock. Festim Diabólico, filme devidamente reconhecido na posteridade, trouxe a jornada de Philip Morgan (Farley Granger) e Brandon Shaw (John Dall), jovens entediados que ao estrangular David Kentley (Dick Hogan), um colega em comum, buscam comprovar a teoria de Nietzsche em Além-Homem, discutidos em sala de aula com o professor Rupert Cadell (James Stewart). Hitchcock, noutra oportunidade, isto é, em Um Barco e Nove Destinos, já havia abordado o suspense diante de um espaço reduzido, oportunidade para o desenvolvimento mais profundo de personagens, bem como a experimentação de técnicas narrativas.

Em 1956, o crime foi reapresentado em Compulsion, romance de Meyer Levin, para três anos depois, tornar-se a peça Never the Sinner, de John Logan, encenada em 1988. Além de ter inspirado episódios de séries como Law & Order e o filme em questão, Cálculo Mortal, o filme foi uma estratégia da atriz Sandra Bullock na evolução enquanto “artista do drama”, haja vista a sua longa linhagem de papeis em filmes de ação e comédias românticas. Na trama, Justin Pendleton (Michael Pitt) e Richard Haywood (Ryan Gosling) são estudantes de uma escola secundária que decidem praticar um crime perfeito. E cometem: ceifam friamente a vida de Olívia Blake (Krista K. Carpenter) após sequestro, seguido do crime e da eliminação do corpo em um local isolado.

Quando o cadáver é encontrado pela polícia, a investigadora Cassie Mayweather (Bullock) é encaminhada para a investigação do crime, tendo como seu parceiro o detetive Sam Kennedy (Ben Chaplin). Juntos, eles precisarão descobrir quem cometeu o ato hediondo, bem como as suas motivações. A localização não dá margem para muitos obstáculos, afinal, a trama se passa no sul da Califórnia, numa zona costeira, distante dos grandes centros urbanos, tais como Nova Iorque e Los Angeles. Isso ao menos é o que os personagens pensam, mas ao passo que a investigação avança, os envolvidos descobrem que o crime vai muito além de uma briga de casal ou tentativa de assalto com estupro.

As pistas falsas remetem ao faxineiro Ray (Chris Penn), um cara fora da lei por ser responsável pelo fornecimento de maconha aos estudantes da escola. Com mais avanços na apuração dos dados obtidos, parcos para um veredicto, novos rumos são tomados, pois tudo indica que os responsáveis do crime são os rapazes Richard e Justin. O primeiro faz o tipo bonitão, galã do colegial, popular, arrogante e filho de pais abastados, personagem bem concebido graças ao ótimo desempenho de Ryan Gosling. O segundo é tímido e reservado, muito inteligente, espécie de cabeça da dupla, haja vista a sua função intelectual durante o desenvolvimento do crime e, por sua vez, da trama. Nós acompanhamos tudo como voyeurs, cumplices do crime cometido com frieza pela dupla de jovens assassinos. Como em alguns filmes de Hitchcock, não importa o crime em si, mas os seus desdobramentos e as estratégias para resolução do conflito estabelecido com a morte de uma pessoa inocente.

Os clichês, caro leitor, estão no filme. E por sinal, não são poucos, o que pode irritar espectadores mais exigentes. Para os interessados em corpos ensanguentados pendurados por todos os lados, ou crimes bárbaros e sanguinolentos, Cálculo Mortal não é o filme ideal. No meio do caminho do projeto criminoso da dupla há uma pedra, obstáculo personificado por Lisa Mills (Agnes Bruckner), garota responsável por sacolejar a dinâmica interna entre Richard e Justin. Com as diversas subtramas, o filme parte de maneira indecisa para o drama, aprofunda na análise de personagem, flerta com questões filosóficas e psicológicas, mas ainda deixa a sensação de que poderia aproveitar melhor o esforço de Sandra Bullock.

Na linha de O Silêncio dos Inocentes, Cassie também tem um passado que define o seu comportamento no presente, tal como a personagem de Jodie Foster, mas o diretor, o roteiro e o elenco da trajetória de Hannibal e Clarice estão em outro nível, mais elevado, claro. Isso não impede Cálculo Mortal de ser um filme eficiente, principalmente em seus aspectos estéticos. A condução musical de Clint Mansell estabelece o clima ideal, a montagem de Lee Percy é didática e a direção de Schroeder cumpre o combinado no título, sem grandes arroubos cinematográficos, mas de maneira correta. O design de produção de Stuart Wurtzel, focado em tons opacos e bastante uso de cenários erguidos com madeira, capricha nos detalhes. A equipe tem Hilton Rosemain na cenografia e Thomas Valentine na direção de arte, profissionais que tornam a experiência visual agradável, mesmo que o ritmo no que tange ao viés do puro entretenimento seja comprometido pela história longa demais.

A direção de fotografia, assinada por Luciano Tovoli, trabalha bem a profundidade de campo, alegoriza técnica com perfis de personagens e cumpre bem o papel de captar imagens realizadas em estúdio, como o embate final, único trecho dinâmico de uma narrativa que tal como já apontado, estende-se mas que o necessário. Com essa escolha narrativa, o suspense dá espaço para um eficiente estudo de personagem. Cassie é uma mulher bem delineada, com a sua necessidade dramática bem interligada com os seus aspectos físicos, psicológicos e sociais. Ela precisa enfrentar o sistema para dar continuidade ao processo investigativo, sempre bloqueado pelo seu superior hierárquico, o chefe de polícia Rod (R. D. Call), afinal, paralelo aos acontecimentos, através de leves camadas, o roteiro nos leva ao passado de Cassie, uma história marcada pela violência doméstica e pela tragédia familiar.

As insinuações homossexuais são outro detalhe que diferencia o filme das sutilezas de Hitchcock no desenvolvimento de Festim Diabólico. Enquanto no clássico há coisas que ficam subentendidas, em Cálculo Mortal a homoafetividade quase se escancara diante do espectador, no entanto, apenas em forma de tensão, pois em momento algum os personagens partem para o “vamos ver”, tampouco se declaram sexualmente interessados um pelo outro. Há de se convir, no entanto, que os tempos são outros e talvez uma pitada extra de sensualidade entre dois caras fosse mesmo o ideal para deixar Cálculo Mortal com cara de Cálculo Mortal, não apenas uma nova versão do clássico do “imortal” Alfred Hitchcock.

O título do filme é uma referência à música Murder by Numbers, de Sting e Andy Summers, da banda The Police. Como filme de suspense, a trama realmente fica devendo. Há poucos momentos emocionantes e de embalo, mas como estudo de personagem o filme consegue manter-se num patamar bastante elevado. O modus operandi da investigadora, dos assassinos, hoje bastante comum com a profusão de séries televisivas sobre o assunto, não deixam a trama ter a sua devida importância. Digamos que Cálculo Mortal seja um filme para os interessados num suspense morno, sem grandes picos, com análise detalhada de pistas e um passo a passo mais lento em relação às revelações finais. Menos ação e mais estudo de personagem, vocês aceitam, caros leitores?

Cálculo Mortal (Murder by Numbers) — Estados Unidos, 2002
Direção: Barbet Schroeder
Roteiro: Tony Gayton
Elenco: Sandra Bullock, Ryan Gosling, Michael Pitt, Agnes Bruckner, Ben Chaplin, Chris Penn, R.D. Call, Tom Verica.
Duração: 122 min.

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