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Crítica | Camelot (1967)

por Ritter Fan
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estrelas 3

Camelot é um daqueles musicais grandiosos de Hollywood que poderá desagradar mesmo aqueles que, como eu, apreciam musicais. Baseado em famoso e bem-sucedido musical da Broadway escrito por Alan Jay Lerner (diálogos e letras) e Frederick Lowe (melodias) e montado pela primeira vez em 1960, a adaptação cinematográfica mantém-se estilisticamente próxima da obra teatral, inclusive com roteiro do próprio Lerner, oscilando entre uma comédia quase pastelão durante seus dois terços iniciais e um drama mais bem estruturado no tempo remanescente que foca exclusivamente em recontar o mítico triângulo amoroso entre o Rei Arthur, a Rainha Guinevere e o cavaleiro francês Lancelot Du Lac, conforme a visão de T.H. White em seu O Único e Eterno Rei, que revisitou as lendas arturianas reunidas pela primeira vez por Sir Thomas Mallory, dando-lhe uma roupagem mais leve e romanceada.

O problema mais substancial dessa superprodução da Warner Bros. e Seven Arts não está na suntuosidade exagerada e artificial dos cenários e figurinos e tampouco nos maneirismos das atuações de Richard Harris, Vanessa Redgrave e Franco Nero vivendo a trinca adúltera, reclamações comuns de muitos críticos, pois, aqui, eles cumprem a função específica da escolha feita na origem: manter a teatralidade da peça, transportando-a quase intacta para o cinema. E com isso não quero dizer que não houve adaptações, pois o roteiro de Lerner foi até surpreendentemente inclemente ao expurgar diversos números musicais, tornando o caráter musical do filme até bastante econômico se comparado com diversas outras obras do gênero da mesma época. Mas a atmosfera de uma grande e cara peça de teatro foi mantida, com cenários marcadamente artificiais (é particularmente chocante a sequência inicial, em uma floresta nevada, que pode tirar o espectador de qualquer realismo que se possa esperar, mesmo que mínimo), closes perpétuos nos rostos dos atores, especialmente a belíssima Redgrave, por quem a câmera de Joshua Logan parece apaixonada (e não posso culpá-lo por isso) e o uso de pesada maquiagem para fortalecer traços e expressões, exatamente como se vê no palco.

O problema principal reside no compasso da obra. São nada menos do que duas horas para estabelecer os três personagens principais e o adultério (que acontece – ainda apenas “nos corações” de Guinevere e Lancelot – nos últimos dois minutos da segunda hora) e, portanto, a linha mestra narrativa. E, lembrando que diversas canções foram cortadas do musical do original e percebendo-se que a duração final do filme é a mesma da peça, é perfeitamente possível perceber-se os “buracos” que são preenchidos com intermináveis diálogos que pouco avançam a narrativa e que, na verdade nada estabelecem. Pior ainda, apesar da qualidade dramática de Harris e Redgrave (tenho minhas dúvidas se Nero é um ator ou apenas um rosto bonito), o texto não ajuda na criação de empatia com eles e entre eles. Há pouca química verdadeira entre Arthur e Guinevere e o que existe entre ela e Lancelot são lampejos do que poderia ser, mas que nunca chega a concretizar-se de verdade.

Além disso, há uma pegada cômica que incomoda, não pela comicidade em si, mas sim porque ela não é feita com piadas, tiradas inteligentes ou outros artifícios que poderiam ser trabalhados no roteiro. A questão é que a atuação de Richard Harris é afetada e saltitante demais, algo que faria sentido em um contexto em que suas ações e reações ecoassem no restante do elenco. Mas não. Ele está sozinho em cena, vivendo o seu Rei Arthur em seu filme particular em que só ele existe. O contraste com a seriedade lânguida da Guinevere de Redgrave e com o bom-mocismo inocente e religioso do Lancelot de Nero é inescapável, o que evita a criação da necessária química entre eles. E não ajuda em nada que o uso de apelidos idiotizantes tomem conta da narrativa, com Guinevere transformando-se em Jenny, Lancelot em Lance e o Rei Pellinor em Pelly. E, antes que alguém venha apontar que o musical é uma comédia, o ponto é que a comédia simplesmente não funciona, talvez por ela ser indireta, talvez por Harris monopolizar essa faceta da produção ou talvez por que o roteiro seja mesmo inábil em construir momentos cômicos.

E, pior, assim que a rusga é criada, Mordred (David Hemmings) é finalmente introduzido completamente do nada, com uma história pregressa contada na sala do trono e que, então, traz uma quebra narrativa grande, convertendo a história no drama trágico que conhecemos. A vilania casual que Hammings traz à fita é bem-vinda até, mas o roteiro dá pouco espaço para ele, pois precisa apertar o passo para encerrar a história nos 45 minutos seguintes, comprimindo um sem número de acontecimentos em pouquíssimo tempo, quase que em antítese a tudo o que veio nas mais de duas horas anteriores e com direito, ainda, a um lado místico de Arthur com Merlin (uma micro-ponta de Laurence Naismith) que, apesar de ser muito bem executado, introduzindo uma vertente mágica à história, parece estar no lugar errado. A comédia, mesmo a corporal de Harris, então, é deixada de lado e abre-se um espaço que mostra o potencial efetivo de Camelot, que carrega bem o filme até seu final anti-climático, mas que faz perfeito sentido, com Arthur declarando que já ganhou a guerra (o filme é contado em flashbacks enquadrados em momentos presentes no início e no fim durante o cerco de Arthur ao castelo de Lancelot).

Apesar de longe do brilhantismo musical de seus colegas de profissão da época (a trupe de A Noviça Rebelde, de dois anos antes, vem logo à mente em termos comparativos), Harris e Redgrave, que cantam de verdade seus números, conseguem se sair muito bem, ainda que eles carreguem nas músicas “faladas” mais do que nas cantadas de verdade. Redgrave, especialmente, convence como uma Guinevere (não consigo chamá-la pelo apelido tenebroso) primeiro perdidamente apaixonada por Arthur e, depois, como alguém dividida entre dois amores, ainda que seus respectivos pares não ressonem com ela de uma forma ou de outra. Franco Nero é uma escalação completamente esquizofrênica, pois ele é um italiano vivendo um francês que fala inglês com sotaque italiano e que canta com sotaque britânico com a voz de um americano (Gene Merlino, que o dublou e, por mais vezes que o aceitável, isso fica dolorosamente óbvio). Chega a ser uma curiosidade tê-lo ali, especialmente porque sua fama – especialmente à época – é de ator que vive personagens durões e Lancelot é uma flor de cavalheirismo, compaixão e devoção religiosa, apesar de invencível em combate.

Em termos musicais, a obra é pontilhada por obras melódicas e bem trabalhadas, ainda que pouco memoráveis em seu conjunto. Mas as sequências em que ouvimos Take Me to the Fair, cantada principalmente por Redgrave e Camelot, por duas vezes cantada por Harris, são os pontos altos e ficarão na memória dos espectadores, a primeira pela graça que é Redgrave usando sua beleza para convencer os mais diversos cavaleiros a lutar contra Lancelot e, a segunda, por sua belíssima e de certa forma triste letra, aliás uma das preferidas de ninguém menos do que John Kennedy.

Entre a suntuosidade indutora de vertigem, afetações, teatralidade e uma enorme duração, muito maior do que realmente deveria ter, Camelot resulta em uma obra que poderá não agradar a todos, mas que jamais é desagradável. Há uma abordagem old school simplificada para as lendas arturianas e para o gênero musical em si (mesmo para a época), mas há uma inegável graça nesse tour de force de Joshua Logan que merece ser conferida pelos amantes de musicais em geral, ainda que, arriscaria dizer, qualquer um que não tenha afinidade com o gênero não vá conseguir conectar-se com a obra.

Camelot (Idem, EUA – 1967)
Direção: Joshua Logan
Roteiro: Alan Jay Lerner (baseado em peça de Alan Jay Lerner, por sua vez baseada em romance de T.H. White)
Elenco: Richard Harris, Vanessa Redgrave, Franco Nero, David Hemmings, Lionel Jeffries, Laurence Naismith, Pierre Olaf, Estelle Winwood, Gary Marsh, Nicolas Beauvy, Gene Merlino (voz)
Duração: 179 min.

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