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Crítica | Canção da Terra Natal (Furusato no Uta)

por Luiz Santiago
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Consta que o primeiro filme dirigido por Kenji Mizoguchi, A Ressurreição do Amor, foi realizado em 1923. Deste filme até o presente Canção da Terra Natal, ele assinou mais 39 obras. Para nossa tristeza, porém, nenhuma delas sobreviveu ao tempo — situação bastante frequente em filmografias de cineastas que iniciaram suas carreiras durante o Primeiro Cinema. Assim, Furusato no Uta acaba sendo o filme mais antigo que existe do diretor, embora seja produto de um profissional que já tinha três anos de carreira e 40 títulos no currículo.

Nascido na região de Bunkyo (território residencial e educacional), mais especificamente no distrito de Hongo (onde fica a Universidade), em Tóquio, numa família de poucas posses, Mizoguchi cresceu acumulando desafetos com o pai, especialmente após a mudança da família para Asakusa. Foi ali, próximo ao quarteirão de bordéis, teatros e casas de divertimento que Mizoguchi viu o pai vender a filha Suzuko para a profissão de gueixa, um afastamento familiar e uma colocação social que marcaria a vida de Mizoguchi para sempre. Seu flerte com o socialismo e sua constante posição de defesa, proteção e denúncia em relação à condição da mulher possuem, como se vê, uma motivação de vida familiar que acompanharam o cineasta ao longo de toda a sua carreira.

Em Canção da Terra Natal estamos diante de um contraste de opiniões sobre a vida no campo e a vida na cidade, com a saída de alguns estudantes para graduar-se em Tóquio e a permanência de outro no interior, “apenas” com o Ensino Médio. O texto de Ryunosuke Shimizu opõe a vida de um condutor de charrete, que nunca saiu da cidade porque sua família é muito pobre e ele não conseguiu continuar com os estudos na capital (apesar de ter sido um dos melhores alunos no ensino regular); e um estudante que retorna da grande cidade cheio de ideias modernas, desprezo pelo espaço campestre e máxima afeição pelos prazeres, pela diversão.

A vida do menino pobre que não tem dinheiro para avançar com os estudos é o grande foco da obra até que um determinado evento muda as coisas. Até esse ponto, o filme gira em torno da dificuldade financeira e do sonho do protagonista em continuar estudando. Isso é bem importante destacar, porque quando a mudança de postura e opinião do jovem vem à tona, no final da obra, simplesmente não conseguimos aceitá-las como algo orgânico, genuíno de sua parte. De certa forma, chega a ser uma armadilha boba do texto, uma armadilha reafirmada pela direção, em vista do que cobrou do ator e pela maneira como o expôs cabisbaixo, para depois, basicamente pelo orgulho de manter uma opinião, fazê-lo seguir outro caminho.

O pior é que o jovem sequer é lavrador, ele é um guia de charrete, levando as pessoas de um lado para o outro na pequena vila. Tudo parece errado nessa decisão. A mudança de comportamento do rapaz não se encaixa no contexto, e vejam que sua intervenção na festa dos amigos só ocorre porque ele vê a própria irmã dançando ali, ou seja, é apenas o orgulho sobre o orgulho com uma pontada de machismo (perfeitamente contextualizável, dado o período histórico, mas impossível de se ignorar quando analisamos a tal “mudança” do rapaz). Quando recebe a oferta de bolsa, a câmera o mostra como profundamente arrependido pela rejeição, mas contemplando uma espécie de revelação, de um orgulho e felicidade de decisão que, mais uma vez, não vejo encaixar-se em nada do que o próprio diretor construíra até aquele momento.

Apesar da mudança orgulhosa e despropositada no encerramento da obra (o personagem bem que poderia estudar as muitas faculdades relacionadas ao trabalho no campo que, sim, já existiam na segunda metade dos anos 1920), o filme cria uma interessante discussão na primeira parte, mostrando indivíduos em situações financeiras levemente diferentes, mas nativos de um mesmo espaço. Há momentos de tensão e muito cuidado na composição de alguns planos que valem ser destacados, assim como a montagem, especialmente entre a chegada dos estudantes de Tóquio até o momento em que Naotaro interrompe o baile e dá uma lição de moral campesina nos colegas.

Canção da Terra Natal é um filme de grande valor histórico e que com certeza vale a pena ser visto. Mas que o leitor fique de sobreaviso sobre a colocação do orgulho opinativo no maior pedestal possível, sendo visto como uma coisa muito positiva, heroica, bela e admirável ao cabo de tudo, quando alguém que sonhava muito em estudar, simplesmente desiste de uma bolse de estudos para “ser um bom camponês“, dando um valor para uma terra que, em nenhum momento do filme antes desse final, parece tê-lo atraído de alguma forma.

Canção da Terra Natal (Furusato no Uta / ふるさとの歌’) — Japão, 1926
Direção: Kenji Mizoguchi
Roteiro: Ryunosuke Shimizu
Elenco: Shigeru Mokudo, Mineko Tsuji, Kentaro Kawamata, Yutaka Mimasu, Michiko Tachibana, Shizue Matsumoto, Masujirô Takagi, Sueko Ito, Shirô Kato, Shigeru Kido, Hiromichi Kawata, Ichirô Shibayama
Duração: 50 min.

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