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Crítica | Câncer

por Luiz Santiago
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Câncer foi um “filme a longo prazo” de Glauber Rocha. Filmado em 1968 e terminado apenas em 1972, em Cuba, a obra comporta duas visões particulares da filmografia do diretor, uma conceptiva, de reflexo no roteiro (apesar do próprio Glauber dizer que o filme não tinha história, há muita coisa sendo contada) e outra estética, representada com maior força na montagem realizada no ICAIC, mas também vista, em formato menor, nos agrupamentos internos de cada esquete fílmico.

É possível dizer que Câncer se coloca em uma linha intermediária entre as abordagens do diretor até Cabeças Cortadas e um novo momento, precedido por História do Brasil (1973) e iniciado com Claro (1975). Nesta fase, encontramos dois diferentes modelos de curta-metragens (Di Cavalcanti e Jorge Amado no Cinema); uma experiência televisiva que carregava os mesmos ingredientes aqui apresentados, só que em fase mais madura (Programa Abertura) e a síntese geral da obra do diretor em seu canto do cisne, A Idade da Terra (1980). Há, portanto, uma grande importância de Câncer na obra de Glauber Rocha, mesmo que vejamos isso “apenas” como sendo o primeiro indício de um futuro próximo em sua filmografia.

O caráter teoricamente marginal da obra é mais verdadeiro no seu enredo do que em sua classificação nesse movimento. Temos dois bandidos em cena na maior parte do filme — interpretados por Hugo Carvana (em excelente atuação) e Antonio Pitanga — que enxergam a vida como um mar fechado de possibilidades. Ambos estão cientes do ciclo vicioso social do qual fazem parte e nem um dos dois hesita em se aproveitar de qualquer situação que lhes beneficiem a curto prazo. Mas esta é apenas a parte superficial das personagens.

Ao criar dois marginais e dar-lhes motivações de ação, Rocha também indica uma diferença moral em cada um. Como o filme não explora situações cotidianas a fundo, trazendo-nos apenas momentos aleatórios (mas de alguma forma, interligados) da vida dos dois homens, o espectador precisa ter bastante atenção para não perder o que é mostrado de cada um. Embora estejamos falando de dois bandidos, há um caráter dramático particular para deles, o que evidentemente lhes dará diferentes visões de mundo e diferentes ações em relação ao todo. Conforme o filme e o tempo diegético passam, esses dois marginais veem as feridas sociais aumentarem ao seu redor. Talvez não percebam, mas estão se perdendo cada vez mais.

Inseridos em um contexto social de crise — o filme não esconde e até se diverte com seu caráter documental-metalinguístico –, os marginais assumem comportamentos distintos, ora padronizados, ora incomuns, procurando de alguma forma sobrevier em um contexto de ditadura e entre ricos e pobres; entre roubos e vendas no mercado negro; entre assassinatos e busca por um amor para suas vidas. E o mais intrigante é que ainda sobra espaço para que o lado sensivelmente humano de ambos venham à tona. Como eles são uma espécie de elefante branco nos roteiros de Glauber Rocha — os atores sociais individuais –, temos maior acesso às suas motivações particulares do que em qualquer outro filme do diretor, onde a identidade coletiva, pública ou temática (geralmente revolucionária, mas, intelectual ou subserviente de forma geral) são mais recorrentes.

Câncer é um filme de grande apelo político-social, mas sua construção e a experimentação estética do diretor através da montagem de som e imagem vão ganhar ou perder espectadores de formas distintas. Não se trata de um filme assim tão diferente de tudo o que Glauber Rocha fez, mas tem um teor, uma mensagem implícita e uma atmosfera que podem incomodar muita gente, tanto pela forma como é passada quanto pela mensagem em si, especialmente para quem esperava de Câncer algo mais ou menos na linha e Terra em Transe.

Câncer (Brasil, 1972)
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Glauber Rocha
Elenco: Odete Lara, Hugo Carvana, Antonio Pitanga, Rogério Duarte, Hélio Oiticica, Eduardo Coutinho, José Medeiros, Luiz Carlos Saldanha, Zelito Viana
Duração: 86 min.

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