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Crítica | Candango: Memórias do Festival

por Gabriel Zupiroli
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Já no título, o filme Candango: Memórias do Festival, dirigido por Lino Meireles, explicita seu funcionamento. Trata-se de uma obra que investiga, através da memória dos diversos indivíduos entrevistados, toda a história do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, desde seu início, em um conturbado período diretamente contínuo ao golpe militar de 1964, até o momento em que se dá a realização do longa-metragem. Porém, mais do que simplesmente desvendar as peripécias e episódios do festival, Candango se envereda por uma atitude grandiosa ainda mais abrangente e excitante: um retrato humilde do cinema brasileiro pela voz daqueles que o compõem e compuseram.

A vasta gama de personalidades entrevistadas traz uma força muito grande ao caráter testemunhal do documentário. Nomes como Helena Ignez, Cacá Diegues, Anna Muylaert, Ruy Guerra, Jorge Bodanzky, dentre muitos outros, são os responsáveis por lapidar a linha narrativa central que envereda pelas caracterização do ambiente do festival, apoiada pelas inúmeras fotos e vídeos do evento. E aqui é possível percebermos um dos acertos mais curiosos do longa: a desconstrução de uma imagem sacralizada de um festival de cinema. Desde o início – algo que possui profundas relações com o sentimento de rebeldia da época -, somos confrontados com o retrato de um mundo em que o cinema não se dá apenas através da filmagem, da exibição e da premiação, mas principalmente pelo que se encontra por fora das cerimônias oficiais, como o espaço de interação entre os artistas, as festas, as fofocas e a relação entre público e autores – através das vaias e aplausos. Meireles se sai muito bem em remodelar a imagem que se tem de um evento cinematográfico em vias de uma proximidade com o espírito necessário à sua época de fundação: a rebeldia, a revolta quente da juventude.

O que, de certa forma, não apenas dita a primeira parte do filme, focada nos anos iniciais do festival, mas também contrasta com sua própria história posterior. Há um embate sutil entre os diferentes imaginários calcados na experiência de uma geração que já se consolidou e se torna anciã e um grupo de cineastas jovens que ainda têm muito a contribuir para a história da premiação. E a dinâmica do âmbito privado do Festival de Brasília é o que coroa este embate, pois são justamente os comentários cínicos, comedidos, espalhafatosos e sarcásticos dos cineastas sobre seu próprio mundo que desenham muito bem o clima que um bom curioso busca conhecer. Nisso, o diretor acerta muito naquilo que anuncia propor na vinheta da 44ª Mostra: a conexão com o público que extrapola o já sedimentado e tradicional campo da cinefilia.

E algo ainda mais interessante que sustenta toda essa premissa de homenagem ao festival é a forma como o filme é editado e fotografado, insinuando um glamour que se encontra desde a legenda de apresentação dos entrevistados (que emula uma fachada de cinemas antigos), até a utilização da música e dos trechos mais marcantes para injetar vida em uma tradição sobre a qual a obra busca claramente se entregar e louvar. Entretanto, como dito antes, é nestes elementos que também fica presente a característica que o eleva a um patamar mais do que simplesmente de investigador do revolucionário Festival de Brasília, que é justamente a de almejar um retrospecto da história bruta e fragmentária do cinema brasileiro como um todo. O que se sai, de certa forma, bem e mal feito, porém mais este do que aquele.

Isso porque o anseio em absorver toda uma extensão da produção cinematográfica nacional pós-1965 até hoje – obviamente que respaldada pelas presenças no Festival, sem um devido olhar atento a outras produções que extrapolam o ambiente – faz com que o filme se estenda além de uma mera rememoração prazerosa de um passado. Sua ambição por uma catalogação do que compõe o mais importante do cinema nacional muitas vezes acaba por contrastar com sua própria proposta louvável: a de, justamente, esmiuçar a relação que o universo do cinema mantém com Brasília.

Nesse sentido, Meireles perpassa temas muito potentes e que raramente têm a devida atenção na mídia, como a figura genial de Paulo Emílio Sales Gomes, porém se alonga em certos momentos em exibições que não remetem com a mesma intensidade à mágica do festival. A opção, por exemplo, de se centrar em diversos filmes que marcaram o evento a cada década expande a produção muito além do limite com o qual ela consegue dialogar, fazendo com que a própria narrativa de rememoração se torne, em certos momentos, enfadonha e eloquente demais, como se fugisse de seu próprio objeto.

Mas isso não é o suficiente para desmoralizar todo o trabalho do filme em vias daquilo que propõe. Cimentando-se em testemunhos sólidos, trata-se de um ótimo exercício da utilização da memória, pela voz dos que experienciaram um momento, na busca de adentrar o efeito mágico que compõe um dos mais importantes eventos cinematográficos do Brasil. Em um paradoxo estimulante de glamour e rebeldia, Candango: Memórias do Festival faz tudo o que o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro precisa para se eternizar na história. Desde rastrear sua origem selvagem até projetar para um futuro incerto sua gloriosa composição.

Candango: Memórias do Festival – Brasil, 2020
Direção: Lino Meireles
Roteiro: Lino Meireles
Elenco: Catarina Accioly, Fernando Adolfo, Cibele Amaral, Suzana Amaral, Tata Amaral, Ana Arruda, Cláudio Assis, Sylvio Back, Berê Bahia, Renato Barbieri, Luiz Carlos Barreto, Othon Bastos, José Eduardo Belmonte, Jean-Claude Bernardet, Jorge Bodanzky, Beto Brant, Orlando Brito, Maria do Rosário Caetano, Paulo Caldas, Iberê Carvalho, Maíra Carvalho, Vladimir Carvalho, Walter Carvalho, Juliano Cazarré, José Damata, Neville de Almeida, Lírio Ferreira, Kiko Goifman, Milton Gonçalves, Ruy Guerra, Helena Ignez, José Joffily, Walter Lima Jr., Umberto Martins, Paulo Miklos, Lúcia Murat, Anna Muylaert, Dira Paes, Antonio Pitanga, Murilo Salles, Paulo Sacramento, Rodrigo Santoro, Silvio Tendler, Ismail Xavier
Duração: 119 min.

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