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Crítica | Cão Danado

por Luiz Santiago
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Com mesclas do noir americano e uma bela referência a um filme de King Vidor (Aleluia, de 1929), Cão Danado (1949) aparece como a (discutível) primeira grande obra de Akira Kurosawa, um penúltimo passo (se excluirmos O Escândalo, seu filme seguinte) antes de sua também discutível obra-prima primeva, Rashomon. Esta construção relativa, porém, não se aplica a muitos leitores e fãs do “Luminoso”, como era chamado. No meu caso, ela é bastante clara, pois contemplo Cão Danado como um verdadeiro filme-trampolim para o Kurosawa Mestre dos anos 1950, e entendo-o realmente como a primeira grande obra do cineasta japonês.

Em Cão Danado já é possível perceber um amadurecimento patente das nuances mais recorrentes do diretor, como o trabalho com a matéria natural (em especial, a chuva), a disposição em múltiplos ângulos no mesmo cenário e o lado sentimental e humano que se faz presente em qualquer situação. Neste caso, a postura passional de um jovem investigador de polícia é quase toda a matéria do filme e o drama policial gira em torno de um tormento particular e da criminalidade na periferia de Tóquio.

Duas das primeiras coisas que se destacam no filme são a fotografia e a direção de arte, que logram transmitir uma forte sensação de calor ao espectador (o filme se passa durante dias terrivelmente quentes), bem como de uma “poluição visual” do cenário, sempre com takes em ambientes abarrotados de coisas e, em sua maior parte, muito pequenos, intensificando ainda mais a sensação de calor e dando espaço para uma interpretação claustrofóbica da história que está sendo contada. Ambos os setores técnicos foram premiados no Mainichi Film Concours de 1949, que também deu a Fumio Hayasaka o prêmio de melhor trilha sonora e a Takashi Shimura o de melhor atuação (também por seu papel em Duelo Silencioso).

O premiado Fumio Hayasaka procurou dar ao filme uma identidade musical múltipla, mas com orientações muito específicas de Kurosawa, que inclusive escolheu qual versão de La Paloma constaria no filme, aquela música de Sebastián Yradier tocada quando Sato leva um tiro, após largar o telefone e correr atrás do bandido. Outro momento que se destaca como identidade musical única é a sequência em que ouvimos a bela valsa de Iosif Ivanovici, The Waves of the Danube, tocada na gaita. Trata-se de uma sequência noturna, onde o detetive Murakami está sentado em cima de um tablado de madeira que cobre um esgoto. Ogin, a mulher que ele persegue, leva-lhe uma cerveja e comida, e pela primeira vez no dia, conversam longamente. Um rapaz afastado deles toca a valsa de Ivanovici em uma marcação de tempo mais ágil que a original, parecendo mais uma canção francesa, como se embalasse esse balé ralé que termina de forma lírica, com a observação de um céu repleto de estrelas. A música original do compositor é fortemente dramática e aparece nos momentos mais icônicos da película, contrastando com o uso da música incidental de caráter mais leve.

Ao pensar em uma história de detetive, Kurosawa e Kikushima não escreveram um roteiro pontuado de tiroteios, caçadas vitoriosas a prestação ou vitória incontestável dos mocinhos ao final da obra. Em primeiro lugar, temos a obrigação moral e neurótica de um jovem detetive que tem sua arma roubada em um ônibus lotado. Movido mais por uma vontade de expiação ou defesa própria, visto que alguns crimes passam a ser cometidos com a arma roubada, Murakami passa de suspeito em suspeito tentando recuperar o seu Colt para se livrar da culpa indireta que acredita ter em relação aos crimes realizados. Apenas a chegada do experiente detetive Sato o faz racionalizar mais do que se entregar a arroubos emocionais e mudar um pouco a abordagem pessoal e profissional de sua busca.

Se a linha cadencial da obra é um drama policial quase noir, o roteiro consegue adicionar outras questões em torno desta coluna principal, seja como aprofundamento psicológico das personagens, seja como melhor abrangência do contexto social em que a história se fixa. A lente de Kurosawa aponta as minúcias de um ambiente propício e propenso ao crime. Mifune e Shimura mais uma vez se destacam como protagonistas, ainda mais porque representam homens da lei em estágios diferentes de suas profissões, logo, o ambiente de aprendizagem, reconhecimento e amizade entre os dois se mostra com maior força.

Cão Danado é um filme que faz do espectador um participante da história, principalmente porque chega um momento em que o roubo da arma parece ínfimo em vista dos maiores problemas que cercam os investigadores, os bairros por onde passam, a cidade onde vivem. O final é o mais anticlimático possível e a escolha dos roteiristas não poderia ser melhor. Murakami aprende e amadurece com o acontecimento, o conflito principal do filme é resolvido, mas nem perto as causas desse tipo de realidade são solucionadas. Kurosawa nos mostra o que é a vida de um profissional cuja importância para a sociedade é grande, mas ao mesmo tempo que o destaca como defensor da lei e do bem, mostra-o como vítima de seu próprio ambiente, seja ele o profissional, seja o pessoal. Aliás, o filme termina com um afunilamento dessas duas facetas da história, não só dos protagonistas, mas de todas as personagens. Viver em sociedade é ser afetado pelas atitudes dos outros, mas nem sempre essas atitudes são boas para nós ou mesmo para os seus autores. É quase uma versão cinematográfica japonesa da máxima sartreana: o inferno são os outros.

Cão Danado (Nora Inu) — Japão, 1949
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Ryûzô Kikushima, Akira Kurosawa
Elenco: Toshirô Mifune, Takashi Shimura, Keiko Awaji, Eiko Miyoshi, Noriko Sengoku, Noriko Honma, Reikichi Kawamura, Eijirô Tôno, Yasushi Nagata, Kappei Matsumoto, Isao Kimura, Minoru Chiaki, Teruko Kishi, Ichirô Sugai, Gen Shimizu
Duração: 122 min.

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