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Crítica | “Carbono” – Lenine

por Luiz Santiago
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Depois do conceitual Chão (2011), Lenine embarca agora em uma viagem de transformações musicais e conceituais mais sutis, porém não menos ricas que as de seu projeto anterior, subtraindo sons de objetos externos e conceitos complexos de engenharia de som para dar conta de um outro objetivo temático-musical.

Carbono (2015, produção de Lenine, JR Tostoi e Bruno Giorgi), título escolhido pelo cantor, que também é engenheiro químico, faz referência ao conceito de alotropia de Berzelius, ou seja, o fenômeno em que um mesmo elemento químico pode originar substâncias simples diferentes. O carbono, devido à sua importância para a formação da vida na Terra e sua variada forma de organização no Universo, foi escolhido como o elemento gerador de alótropos para caracterizar o disco. E que derivações de uma mesma raiz nós temos aqui!

Em conceito teórico (letras das canções), Carbono segue a mesma linha de poesia eco-existencialista e humanista que Lenine escancara desde Labiata (2008), e que aqui consegue misturar ao carbono, à terra, à água e ao homem em relações mais íntimas, mais subjetivas. Há um lirismo um tanto desesperado/urgente no álbum, em contraponto a uma calma que não deixa de denunciar, criticar a expor a crueldade do mundo à sua volta. Mas esse lirismo também sabe aproveitar o momento, gozar e sentir a textura do pouco que resta das pequenas cadeias químicas pessoais que liga não só esse eu lírico esperançoso, um pouco inconformado e às vezes enraivecido ao mundo, mas o que liga cada instrumento, compasso e versos das 11 canções do disco.

Castanho abre Carbono com as violas de Ricardo Vignini, o baixo narrativo e a voz extremamente suave e “atrás do ritmo” de Lenine. É uma canção que tem cara de gênese, de início de vida, de primeiros passos. E perceba como esse início se opõe a Undo, o desfecho do álbum (única música instrumental), com sua pegada rock’n’roll que reúne toda a banda participando da criação musical e nos dá a ideia de passos apressados, vida ágil, mutação, evolução, após o início mais violeiro ou ‘sertanejo’ pretendido pelo cantor. O ciclo da cadeia carbônica inteira se fecha aí.

O Impossível Vem pra Ficar reúne dois músicos do 5 a Seco (Tó Brandileone e Vinicius Calderoni) e mescla rock com MPB na cadência rítmica alternada de Castanho. Tem brasilidade de sobra aí. Pitadas de capoeira, batida dinâmica e nada convencional, um pouco próximas ao bebop americano, o que é uma delícia de se ouvir. Esse caminho é visto de maneira mais clara e bruta na interessante A Meia-Noite dos Tambores Silenciosos, canção gravada com todos os músicos tocado ao mesmo tempo (ao vivo) e que mistura o conceito do disco à música tradicional pernambucana em um evento específico do Carnaval, contando aqui com a Orkestra Rupilezz numa execução final de qualidade e concepção de fazer cair o queixo.

Saindo do maracatu, a cadeia musical segue com o frevo-canção Cupim de Ferro, outra faixa com todos tocando ao vivo, uma letra novamente ligada ao carnaval e, de certa forma, ao manguebeat, tendo a participação especial do Nação Zumbi. Perceba como a orquestra de metais aqui é substituída pela guitarra e pelo baixo e como a percussão, tendo uma excelente fonte, dá a identidade forte e marcante da faixa. E por falar em identidade, a excelente A Causa e o Pó, música de Lenine com o filho João Cavalcanti, é uma que com certeza dividirá opiniões. O trabalho de engenharia de som, composição e execução é bastante criativo, mas já ouvi muita gente reclamar do “barulho demasiado”, o que é uma grande bobagem, pois o tal “ruído” não está ali como componente musical vazio ou puramente “experimental”. Seu uso faz encontro simbólico com a letra e existe em intensidade em momentos específicos, silenciando ou em execução pianíssima quando a letra cobra outro tipo de instrumentalização.

A opinião político-ecológica de Lenine e a já conhecida forma dele brincar com instrumentos em crescendo em determinadas faixas aparece na brilhante Quede Água?, outra parceria com Carlos Rennó e que serve como retrato do presente e aviso para o futuro (profecias pouco animadoras e muitíssimo realistas que o cantor vem fazendo desde Labiata), uma visão do mundo sob o Antropoceno, sobre as respostas da Terra ao que o Homo Sapiens lhe fez. E quase como uma pausa, mas ainda assim como uma análise pessoal para o homem, vem a canção mais acessível de Carbono, Simples Assim, uma faixa voz-e-violão que é a marca registrada das parcerias de Lenine com Dudu Falcão. Trata-se de uma canção muito bonita, mas que se destoa do conceito do disco, talvez por ter sido a única a existir antes da proposta do álbum ter sido definida, mas que de toda forma acabou entrando para o repertório final. Nas entrevistas sobre o disco, Lenine chegou a comentar a ligação da letra com a proposta de Carbono, e ela de fato existe nessa visão da busca pela simplicidade em um mundo onde ‘excesso’ é a palavra básica, mas tal relação é fugaz demais perto do que as outras canções nos dá.

O caminho para o final começa com Quem Leva a Vida Sou Eu, uma paráfrase à famosa canção de Zeca Pagodinho e que traz um coro de Lenine com seus três filhos (assim como em todo o disco) e um baião de batida pesada, com modificações que tornam o gênero ainda mais bonito. Não é a melhor canção do disco, mas ainda assim é uma boa canção. Já Grafite Diamante é um exercício musical de altíssimo nível. Parceria de Lenine com Marco Polo, da lendária Ave Sangria, traz a psicodelia filtrada em uma composição musical que é Lenine com todas as letras. Toques do rock parecido com o de Ave Sangria e direito a guitarra distorcida, sopro pontual e percussão exemplar. É pra ouvir no último volume e ainda curtir a oposição de ideias mostradas não só pelos alotrópicos grafite e diamante (olha o carbono como conceito-chave aí novamente!) mas nas ideias em tese, antítese e síntese no decorrer da canção.

O Universo na Cabeça do Alfinete, última faixa cantada do disco (a seguinte é apenas instrumental, como comentamos no início da crítica), traz ninguém menos que Lula Queiroga, parceiro de Lenine desde Baque Solto (1983) em uma faixa que possui o caminho clássico de uma sonata, com orquestração a cargo do pianista, maestro e compositor Martin Fondse (parceiro de Lenine desde o projeto A Ponte, de 2013) e uma mensagem muito bonita, encerrando o caminho teórico, mas não musical, de Carbono com um tom lunar e com um jogo de olhar de dentro para fora que deixará muitos ouvintes de olhos brilhando por uns bons minutos. É através da delicadeza e pequenez do homem frente ao Universo – e sua visão orgulhosa de achar que tem o controle sobre o espaço onde vive – que o álbum se despede em poesia e pequena amostragem das transformações que acontecem o tempo todo e que nós não percebemos ou ignoramos.

Em Carbono Lenine amadurece ainda mais a sua proposta de álbum-conceito e entrega um disco em tese simples (se o compararmos a Chão) mas sensível, provocador e brilhante. Carbono é daqueles lançamentos pra se aplaudir de pé. Por muito tempo.

Aumenta!: Grafite Diamante
Diminui!: —
Minha canção favorita do álbum: A Causa e o Pó

Carbono
Artista: Lenine
País: Brasil
Lançamento: 28 de abril de 2015
Gravadora: Universal Music
Estilo: MPB, Rock, Frevo, Maracatu

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