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Crítica | Caríssimo Simenon. Mon cher Fellini. Correspondência de Federico Fellini e Georges Simenon

20 anos de correspondência entre dois grandes artistas.

por Luiz Santiago
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Este é um livro impressionante sob diversos aspectos. É um projeto aplaudível da Editora Adelphi, responsável por publicar Simenon na Itália desde o final da década de 1980, reunindo num único volume uma famosa entrevista, diversas declarações a jornais e revistas e mais de 20 anos de correspondência entre o cineasta italiano Federico Fellini e o escritor belga Georges Simenon.

A admiração entre esses dois artistas começou muito antes deles se conhecerem. Fellini lia Simenon desde a adolescência. Simenon admirava Fellini desde 1954, com o lançamento de A Estrada da Vida. Esse contato com as obras um do outro foi o “primeiro contato à distância” que tiveram, e que se tornaria mundialmente conhecido em 1960, quando Simenon, ocupando a cadeira de presidente do júri do Festival de Cannes, lutou com todas as forças para que A Doce Vida recebesse a Palma de Ouro. Naquela edição, o longa de Fellini tinha como fortes concorrentes A Fonte da Donzela, de Ingmar Bergman e o favoritíssimo da edição, A Aventura, de Michelangelo Antonioni, que acabou ficando “apenas” com o Prêmio do Júri.

Esse episódio abriu de vez o baú de uma admiração entre esses dois homens, que finalmente se conheceram pessoalmente durante o Festival de Cannes que deu a Palma de Ouro a Fellini. Simenon era só elogios ao artista que tanto admirava e ao filme que considerava uma obra-prima. Contatos breves e muito calorosos entre os dois transcorreram nos anos 1960. Então, em julho de 1969, a segunda carta foi enviada, de Roma para Lausanne (a primeira carta, de Simenon para Fellini, enviada um mês antes, foi perdida). Dava-se início a uma sequência de correspondências que só terminaria com um telegrama enviado por Fellini em julho de 1989, dois meses antes da morte de Simenon na Suíça, aos 86 anos.

O livro da Adelphi é quase perfeito, considerando a sua proposta epistolar, de cadernos de cinema e literatura, publicando material raro (cartas e telegramas) e material relativamente conhecido, mas de difícil acesso por parte do público comum (as entrevistas cedidas por ambos os artistas às mais diversas mídias). O volume começa com um texto simples de curadoria, que mesmo não sendo muito detalhista, entrega-nos as informações essenciais sobre o contato entre os dois homens e fala como eles se tornaram grandes amigos. Na sequência, diversos trechos de entrevistas mostram a apreciação que um tinha pelo trabalho do outro. Esses trechos nos ajudam a entender melhor o caráter da amizade entre os dois, preparando-nos para a melhor parte do volume: as cartas. 

Ao todo, são 22 missivas, contando cartas e telegramas. Não é lá muita coisa, mas o leitor tem a sensação de que é muito sim. Ao longo da obra, os editores Claude Gauteur e Silvia Sager nos indicam pontos onde deveriam haver telegramas que infelizmente não encontramos, mas que são citados nas cartas de ambos, indicando um volume maior de correspondências que nunca conheceremos. Também indica-se os momentos de encontros pessoais entre os dois, e as ligações telefônicas, de modo que as cartas são apenas uma parte – e ainda incompleta – dessa amizade entre gigantes que conversavam abertamente sobre suas fraquezas, sensibilidades, carinho que sentiam um pelo outro e admiração mútua, em muitas áreas da vida, não apenas em suas produções artísticas.

De um “olhar puramente artístico”, é muito mais fácil rastrear a carreira de Fellini sendo observada por Simenon. E o ponto mais intenso disso, na obra, se dá nos comentários sobre o filme Casanova (1976), que encantou Simenon de maneira grandiosa. Ao final do livro, os editores reproduzem a ótima (mas curta) entrevista que o escritor fez com o diretor para a revista L’Express, comentando sobre o filme, os bastidores e alguns de seus possíveis significados. É nessa entrevista que Simenon dá a Fellini a lendária informação de que tinha dormido com 10 mil mulheres durante a vida. Mas para além de Casanova, nas cartas comenta-se sobre Satyricon (1969), Anotações de um Diretor – documentário sobre um longa sonhado, iniciado, mas não completado de Fellini, A Viagem de G. Mastorna (1969), Os Palhaços (1970), Amarcord (1973), Ensaio de Orquestra (1978), Cidade das Mulheres (1980) – junto com Casanova, o filme que mais informações de produção e mais conversas temos sobre –, Ginger e Fred (1986) e Entrevista (1987).

Já da perspectiva de Fellini, a admiração é mais “pupila” (Simenon era 17 anos mais velho e foi muitíssimo mais prolífico, tendo escrito, ao todo, quase 500 novelas) desaguando em citações de passagem às obras do Comissário Maigret, como O Cavalariço da Providence (1931), O Enforcado de Saint-Pholien (1931) e O Cachorro Amarelo (1931). Fora desse Universo muito conhecido, Fellini ainda cita O Homem Que Via o Trem Passar (1938) e fala bastante sobre os livros da maturidade de Simenon, como Le Déménagement (1967) e, principalmente, as obras a seguir: Um Homem Como Outro Qualquer (1975), Enquanto eu Estiver Vivo (1976), Cartas Para Minha Mãe (1976) – que emocionou muito a Giulietta Masina, algo que Fellini escreve especificamente a pedido da esposa – e Memórias Íntimas (1981), sobre as quais ambos conversam bastante em algumas cartas.

Livros de compilação de cartas sempre me fazem sentir como se estivesse fazendo algo proibido, lendo correspondências que eu não deveria ler. O que observamos desses escritos entre Simenon e Fellini é como a amizade entre dois grandes artistas, dedicados a diferentes áreas, transita entre divagações sobre como é estar velho e se sentir criança; sobre teorias a respeito do que é a criação artística; sobre comentários gerais a respeito da vida, das escolhas, medos, desejos e planos para o futuro. Eu só gostaria que os editores tivessem adicionado algum texto pensado para a finalização, nem que fosse um daqueles “finalmentes” expondo a reta final da vida dos personagens históricos em questão. O livro termina abruptamente, após a entrevista entre Simenon e Fellini, em 1977, e o leitor sente falta de algo melhor pensado para o encerramento. Essa falha, contudo, não tira a riqueza que o livro nos traz, fazendo-nos conhecer os bastidores de algumas criações e os particulares de uma grande amizade. A amizade entre dois gigantes artistas do século XX.   

Carissimo Simenon, mon cher Fellini. Carteggio di Federico Fellini e Georges Simenon (Itália, 1998)
Autores: Federico Fellini, Georges Simenon
Editora original: Adelphi
Tradução das cartas em francês: Emanuela Muratori
Editoria: Claude Gauteur, Silvia Sager
142 páginas

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