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Crítica | Carta Camponesa (Kaddu Beykat)

Lutas por sobrevivência.

por Luiz Santiago
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Existe uma intimidade genuína da diretora Safi Faye com o tema e com o ambiente que filma nesta sua narrativa sobre as “palavras dos camponeses“. Nesse aspecto, ela dá destaque às decisões da pequena vila, tomadas em conversas debaixo da “árvore das palavras“, de onde vem o título da obra, normalmente traduzido como “carta camponesa“. O lado etnólogo da diretora se une também à sua vontade de contar uma história a partir de um ponto de vista dramático (o do jovem casal Ngor e Coumba), mas com um andamento documental. Isso faz de Carta Camponesa um filme que registra de maneira viva o cotidiano de senegaleses que herdaram um modelo econômico falido da colonização, um modelo que agora os está lavando à ruína. Um dos motivos das dificuldades econômicas citadas na obra é a falta de chuvas na região, que simplesmente anula a colheita do amendoim. Mas também existem cobranças de impostos e ajustes políticos que pioram a vida dos habitantes desta localidade, ano após ano.

A câmera circula por diversos grupos de pessoas, em diferentes atividades. O funcionamento social é simples, e por estarmos falando de um recorte pequeno do povoado, a sensação de rotina (que marca absolutamente toda e qualquer sociedade mundo afora) se torna ainda mais evidente e, de certa forma, mais opressiva. A sensação de que a vida ali se repete sem alterações e sem muitas perspectivas para o futuro é reforçada pela pequena população filmada em suas tarefas braçais e pouco compensadoras do dia a dia. Com isso, a cineasta consegue chamar a atenção do público para expor aquilo que dá propósito à exibição dessas vivências: o apontamento das trágicas cicatrizes deixadas pela colonização francesa. Em dado momento, numa das interações que dialoga sobre a relação entre a tradição e a modernidade, o assunto embaixo da árvore das palavras é a política. E alguns homens ali dão a sua opinião sobre o significado dessa palavra para eles:

Para mim, política significa que só como 1 vez ao dia, durante 6 meses do ano.

Para mim, política significa não poder fazer mais sacrifícios de animais.

Para nós, política significa que nossas filhas não têm mais dotes e os homens jovens não têm dinheiro.

Vão para a cidade procurar trabalho. Essa é a política!

A sobrevivência dessas pessoas anda lado a lado com a tentativa de também manter alguns rituais sociais e elementos culturais progressivamente apagados pelos “novos tempos“. A discussão sobre o conflito geracional começa em um aspecto compreensível, o econômico, falando sobre a ida dos jovens para a cidade, a fim de procurar emprego. Nesse caso, o problema é que muitos deles não retornam à vila de origem. Mas também vemos a conversa alcançar a mudança na ação de sacrificar animais; na existência de um dote para o casamento das filhas; no exercício de certos rituais para determinadas cenas da vida, como o casamento ou a colheita em um ano difícil.

Os percalços, porém, não estão apenas no “espaço isolado do interior“, como alguns talvez possam apontar como justificativa. O problema é que os trabalhadores, a grande população local, não têm acesso às ferramentas que geram os produtos para a venda e, em última instância, o salário. Falta oportunidade, falta oferta de emprego, faltam elementos básicos de sobrevivência para essa população, que chega a dizer que em tempos passados, pelo menos a comida era acessível. Os tempos modernos trouxeram novas exigências, o apagamento de ensinamentos ancestrais e progressiva escassez. E a diretora mostra que, seja na cidade, seja na vida camponesa, a situação é a mesma, muda-se apenas as ferramentas  de trabalho.

A reflexão proposta por Safi Faye neste seu primeiro longa-metragem (um marco do cinema no continente, dando à artista o título de “primeira mulher da África Subsaariana a dirigir um longa-metragem distribuído comercialmente“) passa pelo sentimento de pertencimento a um local, enquanto se vê toda a tradição desse espaço modificar-se com o tempo. Parte dessas mudanças, como já discutimos, tem a ver com a exploração dos franceses na região. Mas o processo de descolonização também não foi feito pensando na cura para as doenças sociais deixadas pelos europeus. A exploração econômica continua, agora com a falsa bandeira da liberdade — e é “falsa“, porque o povo não tem a oportunidade de escolher entre opções reais. A luta pela vida, em Carta Camponesa, segue ao lado de uma luta pela fixação de raízes, de memórias, pela preservação do solo e da terra ancestral. Uma carta que é um histórico pedido de socorro para um povo.

Carta Camponesa (Kaddu Beykat) — França, Senegal, 1975
Direção: Safi Faye
Roteiro: Safi Faye
Elenco: Safi Faye, Assane Faye, Maguette Gueye
Duração: 94 min.

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