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Crítica | Cartas de Iwo Jima

por Ritter Fan
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Cada vez que revejo a dupla de filmes A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, impressiono-me mais com o tamanho do empreendimento por um cineasta já então no alto de seus 76 anos do que os ótimos filmes em si. Afinal, é impossível não admirar Clint Eastwood por embarcar em um projeto casado dessa magnitude tendo a crucial e violenta batalha de Iwo Jima, como pano de fundo. E o que consegue ser ainda mais incrível é que, não satisfeito em apresentar a visão japonesa dos eventos, o diretor e produtor – juntamente com Steven Spielberg – fez algo que muita produção recente alardeia, mas acaba fazendo errando na execução: a regionalização da história.

O que quero dizer com isso é que, diferente do que muitos apregoam, não é necessário um diretor da nacionalidade da história sendo contada para que ela seja respeitada em seus mínimos detalhes. O que é necessário mesmo, de verdade, é um trabalho árduo de pesquisa, atenção e reverência ao material fonte, um olhar técnico cuidadoso e, claro, um elenco que transmita a verossimilhança exigida. E Eastwood, diretor tradicional americano de posições políticas controversas e vistos como muitos como conservador, fez isso em Cartas de Iwo Jima como pouquíssimas produções conseguiram de verdade na História do Cinema, o que incluiu a contratação de Iris Yamashita, roteirista nipo-americana, e de um elenco quase que integralmente feito de japoneses nativos encabeçado por Ken Watanabe, o único nome realmente conhecido e, acima de tudo isso, a eleição da língua nipônica para todos os diálogos.

O resultado é realmente único e tão cuidadoso na forma como retrata a cultura japonesa da época que o longa recebeu elogios rasgados da imprensa do país, basicamente com todos espantados pelo que viram na tela vindo de Hollywood. Novamente, não basta anunciar um filme “que respeita a cultura do país” como virou moda fazer por aí, tem que realmente fazer isso. Melhor ainda é alcançar esse objetivo sem ficar alardeando por aí o tal respeito pela cultura como se isso fosse algum mérito especial.

Como o título dá a entender, o roteiro usa correspondências de soldados em Iwo Jima como base para sua narrativa. As principais cartas são verdadeiras, do General Tadamichi Kuribayashi (Watanabe), comandante das forças nipônicas na ilhota perdida no Oceano Pacífico, que foram compiladas em forma de livro no Japão, mas Yamashita usa também as de outros personagens, especialmente o recruta fictício Saigo (Kazunari Ninomiya) que tem a função de ser a linha mestra da ação e a forma de o espectador conectar-se com a narrativa por ele não ser oficial, normalmente atrás das linhas, e sim um soldado que transita pelas diversas cavernas cavadas por eles por ordens de Kuribayashi no tempo que antecedeu o ataque maciço dos EUA e que transformou a batalha, prevista para durar apenas cinco dias pelos americanos, em um banho de sangue interminável de 36 dias.

Mas, assim como em A Conquista da Honra, o interesse de Eastwood não é lidar com a guerra em si, mas sim usá-la como forma de criar fascinantes estudos de personagens. Usando o recurso de enquadramento em que arqueólogos em 2005 acham algo enterrado nas cavernas da ilha, o longa é, na verdade, um grande flashback que começa com a chegada de Kuribayashi ao local, logo alterando a forma como as defesas são montadas e, ao longo da progressão da batalha, lutando ao máximo contra os chamados “ataques banzai” típicos dos japoneses em situações de desespero e também contra a prática de seppuku, ou suicídio pela glória, parte fundamental do Bushido, ou Código do Samurai.

Com isso, vemos outro enfoque sobre o que é ser herói, com o general, fiel até o último segundo ao Imperador, mas perfeitamente ciente desde o início sobre suas chances, usando sua técnica e seu conhecimento do inimigo (ele estudara nos EUA) para cuidadosamente plantar seus soldados em posições estratégicas para fazer ruir o desembarque em massa dos americanos. Mas Kuribayashi, exatamente por ser o comandante das forças da ilha, permanece fundamentalmente em segundo plano a partir do momento em que a batalha começa, cabendo então a Saigo, que o general salvara de castigo corporal no dia de sua chegada e que deixara mulher e uma filha que não viu nascer no Japão, a nos fazer observar sobre os costumes japoneses e a forma de eles encararam a honra e o dever, recusando-se, em geral, a aceitar a derrota sem o sacrifício máximo.

É pelos olhos de Saigo que vemos a impressionante rede subterrânea que os soldados haviam cavado a mando do general, as dúvidas de diversos soldados sobre render-se ao inimigo, os sacrifícios em vão ao sinal de derrota e assim por diante. Eastwood mantém um ar solene e melancólico que muito claramente condena a guerra em todos os seus aspectos, mesmo reconhecendo, nas entrelinhas, que ela é inevitável. Há uso de flashbacks dentro do flashback geral que é o filme todo, mas isso acontece de maneira muito econômica, apenas para pontuar momentos marcantes nas vidas de Kuribayashi e Saigo.

Apesar de ser um filme bem diferente de A Conquista da Honra, Tom Stern repete seu trabalho de fotografia anterior, criando uma perfeita unicidade em termos de paleta de cores e de granulação de filme, estabelecendo, com isso, a irmandade entre as produções. Stern, assim como no primeiro longa, extingue as cores quase que por completo, deixando a areia vulcânica de Iwo Jima (algumas poucas sequências foram filmadas in loco na ilha, pois ela, hoje, é um santuário para os japoneses, com grande parte das batalhas tendo sido fotografadas na Islândia, ilha de geologia parecida) ditar a escolha dos tons de cinza, sépia e verde que reinam na obra e que contribuem para a pegada melancólica que Eastwood quis impor.

Cartas de Iwo Jima é um triunfo audiovisual de uma lenda do cinema americano que soube transpor-se para uma outra cultura – e uma muito diferente da americana – para criar uma obra que muito merecidamente valeu-lhe a quarta indicação dobradinha de Melhor Filme e Melhor Diretor no Oscar. Quando um cineasta simplesmente se recusa a parar de produzir, abraçando com vigor sua arte, os resultados podem ser impressionantes como foi o caso aqui.

Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima – EUA, 2006)
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Iris Yamashita (baseado em história de Iris Yamashita e Paul Haggis, por sua vez baseada em livro de
Tadamichi Kuribayashi e Tsuyoko Yoshido)
Elenco: Ken Watanabe, Kazunari Ninomiya, Tsuyoshi Ihara, Ryō Kase, Shidō Nakamura, Hiroshi Watanabe, Takumi Bando, Yuki Matsuzaki, Takashi Yamaguchi, Eijiro Ozaki, Alan Sato, Nae Yuuki, Nobumasa Sakagami, Masashi Nagadoi, Akiko Shima, Luke Eberl, Jeremy Glazer, Ikuma Ando, Mark Moses, Roxanne Hart
Duração: 141 min.

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